Humanismo
 

- Gil Vicente -

  Pouco se sabe de sua vida, apenas que foi ourives da rainha D. Leonor e provavelmente, pela riqueza de citações em sua obra, aluno de alguma universidade. É tido como o inicioador do teatro português, já que, antes dele esta arte se limitava à dramaturgia religiosa e ao teatro alegórico. Embora sua concepção de vida seja rigorosamente cristã, sua sátira incide precisamente sobre a corrupção dos valores morais de seu tempo, atingindo de uma só vez ricos burgueses, fidalgos, padres, autoridades políticas e religiosas, enfim, todos aqueles que aderissem à desagregação moral em que ele via mergulhada sua época, quando o dinheiro se torna a mola mestra da vida.
  Mas para que sua sátira tivesse o êxito desejado, era preciso conhecer esta desagregação moral profundamente, ou seja, voltar-se para o homem, observá-lo, analisá-lo, revelando em minúcia seus defeitos e fraquezas. É assim que cria uma galeria de tipos variados e universais, oriundos de todos os setores da sociedade; ridicularizados sobretudo em seus vícios: médicos irresponsáveis (farsa dos Físicos), padres relaxados (O Clérigo da Beira), o nobre que vive do trabalho alheio (farsa dos Almocreves), etc.
  Abaixo você lerá um fragmento do "Auto da Lusitânia", peça de base mítica que narra os amores entre "Lusitânia" e "Portugal", personagens mitológicos. O texto tem ressonâncias no presente de Gil Vicente, que busca formar um panorama de sua terra, apreendendo a totalidade de suas raízes culturais. Estão em cena dois diabos, "Berzebu" e "Dinato", que se preparava para escrever, quando entra "Todo o Mundo", ricamente trajado e parecendo procurar algo. Logo depois dele, entra um outro homem pobremente vestido, é "Ninguém":

  NINGUÉM
Que andas tu i buscando
TODO O MUNDO
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando perfiando
por quão bom é perfiar.
NINGUÉM
Como hás, nome, cavaleiro?
TODO O MUNDO
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisso me fundo.
NINGUÉM
E eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
BERZEBU PARA DINATO
Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
DINATO
Que escreverei, companheiro?
BERZEBU
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
NINGUÉM PARA TODO O MUNDO
E agora que buscas lá?
TODO O MUNDO
Busco honra muito grande
NINGUÉM
E eu virtude, que Deos mande
que tope co' ela já.
BERZEBU PARA DINATO
Outra adição nos acude:
escreve logo e a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
NINGUÉM
Buscas outro mor bem qu' esse?
TODO O MUNDO
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fezesse
NINGUÉM
E eu quem me reprendesse
em cada coisa que errasse.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve mais.
DINATO
Que tens sabido?
BERZEBU
Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
NINGUÉM PARA TODO O MUNDO
Buscas mais, amigo meu?
TODO O MUNDO
Busco a vida e quem ma dê.
NINGUÉM
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve lá outra sorte.
DINATO
Que sorte?
BERZEBU
Muito garrida.
Todo o Mundo busca a vida,
E Ninguém conhece a morte.
TODO O MUNDO PARA NINGUÉM
E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar
NINGUÉM
E eu ponho-me a pagar
quando devo pera isso.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve com muito aviso.
DINATO
Que escreverei?
BERZEBU
Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
TODO O MUNDO PARA NINGUÉM
Folgo muito d' enganar,
e mentir naceo comigo.
NINGUÉM
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar
BERZEBU PARA DINATO
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
DINATO
Quê?
BERZEBU
Que Todo o Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
NINGUÉM PARA TODO O MUNDO
Que mais buscas?
TODO O MUNDO
Lisonjar
NINGUÉM
Eu sou todo desengano.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve, ande la mano!
DINATO
Que me mandas assentar?
BERZEBU
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.