MÍDIA,
HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA:
AS MÚLTIPLAS
PRÁTICAS DE DISPUTA NO CAMPO DA CULTURA
Ana Lucia S. Enne[1]
A
minha intervenção, neste debate, visa problematizar o olhar acerca
do lugar da mídia na construção social da realidade, que,
obviamente, tomamos aqui como um dado. Superamos, com as pesquisas
das últimas décadas, algumas das primeiras teorias da comunicação
que sustentavam que o esforço midiático era mimético, ou seja,
reproduzir como um espelho a realidade do mundo. Sabemos que os
meios de comunicação buscam sua matéria prima na chamada realidade
primeira, do senso comum, mas também temos convicção de que sua
relação para com esse mundo não é simplesmente de representação a
partir de um preexistente, mas de construção dessa mesma realidade,
em que esse exercício de representação é carregado de signos
ideológicos e demarcadores de posições e interesses de sujeitos
concretos.
Assim, estamos partilhando aqui da visão já consolidada de que a
mídia é construtora da realidade social, agência fundamental para a
constituição de memórias e identidades, e que carrega, através de
seu discurso, instrumentos de saber e poder que cristalizam visões
de mundo, preconceitos e estigmas, concepções hegemônicas que estão
atreladas a posições de classe, interesses de mercado, motivações
políticas, dentre outros condicionantes do universo da produção
midiática.
Dessa forma, queremos deixar bem claro, em nossa intervenção
inicial, que consideramos a mídia: a) um instrumento de discurso e
poder; b) gerenciada por sujeitos sociais que são agentes concretos,
que ocupam interesses e posições que obviamente interferem em suas
práticas discursivas; c) lugar estratégico para a implementação da
dominação hegemônica, atrelada, como já indicamos acima, a
interesses econômicos e políticos, marcadamente de classe social; d)
uma das principais agências para a construção de memórias e
identidades sociais, num jogo de representação e construção da
realidade social que implica, necessariamente, em reconhecer seu
lugar chave na formação do mundo contemporâneo.
Não estamos, portanto, negando que exista intenção manipuladora nas
ações midiáticas, muito menos estratégias de dominação através de
suas produções. Se pensarmos, para ficarmos em exemplos óbvios, na
política de distribuição de concessão dos canais de rádio e
televisão, evidentemente monopolista; nas controvérsias sucessivas
envolvendo a principal emissora do país, a Globo, como o acordo
Times-Life, a relação com o governo militar, o episódio Diretas Já,
o episódio Proconsult x Brizola, o episódio edição do debate Lula x
Collor; na escandalosa diferença entre a programação da TV Globo e a
TV Futura, sobre a qual pouco se fala mesmo se tratando de um
evidente descaso com a Constituição; na posição conservadora da
imprensa brasileira, que, na concepção de pesquisadores da história
da imprensa no Brasil, já deveriam ser considerados “intelectuais
tradicionais”, no sentido gramsciano, de tanto apoiarem as elites
nacionais; na parcialidade vergonhosa da principal revista nacional;
na submissão da programação, forma e conteúdo dos meios de
comunicação à lógica do espetáculo e da mercantilização; dentre
outros exemplos que poderíamos citar, torna-se impossível negar que
a mídia é instrumento político, de dominação, claramente um lugar de
ideologia e hegemonia.
Portanto, não nos interessa aqui negar estas constatações, das quais
partilhamos. Isso, obviamente, nos aproxima de um olhar clássico
sobre os meios de comunicação, proposto pelos grandes pensadores da
Escola de Frankfurt. No entanto, neste debate nossa intervenção se
propõe a ultrapassar também alguns dos pontos dessa teoria crítica,
seguindo a linha de pensamento de outras formas teóricas, como os
Estudos Culturais e os Estudos de Recepção e Mediação, com os quais
concordamos mais integralmente. Reconhecendo a contribuição da
teoria crítica para desvelar o caráter ideológico e dominador dos
meios de comunicação, buscamos, em nossa fala, refinar este debate,
trazendo a contribuição de outros autores, que complexificaram
aquilo que os frankfurtianos, por evidentes limites de tempo e
espaço, terminaram por reduzir a um conflito dualista.
E
como podemos complexificar a relação entre a mídia e os sujeitos
sociais, que a recebem, sem perder de vista: 1) que a mídia é um
lugar estratégico de dominação; 2) que seu discurso é permeado de
relações de poder? Proponho que façamos o mesmo percurso que alguns
dos grandes pesquisadores da comunicação contemporânea, como Stuart
Hall e Jesus Martin-Barbero, para ficar com os expoentes: entendendo
que o discurso é lugar de disputa pelo direito de significar. Ou
seja, as práticas discursivas são parte de um intenso jogo, arena de
disputas e negociações, e não somente lugar de manipulação e
dominação.
Ambos (Hall e Barbero) partem de dois grandes pensadores do século
XX para formularem suas teorias: o russo Mikhail Bakhtin e o
italiano Antonio Gramsci. De Bakhtin e sua filosofia da linguagem,
eles extraem os seguintes conceitos: todo discurso é ideológico,
porque constrói o mundo e não somente o espelha. Mas essa construção
não é monodiscursiva, ao contrário: todo discurso é necessariamente
polifônico (são múltiplas as vozes que o compõem) e dialógico (são
múltiplos os discursos, antecessores e sucessores, com os quais cada
discurso tem de dialogar, no tempo e no espaço). Assim, cada prática
discursiva – e a mídia é um lugar privilegiado de práticas
discursivas – é ideológica (propõe representações do mundo que se
querem hegemônicas), mas isso não se dá por uma só via, ao
contrário, é resultado de um embate entre as vozes da polifonia e os
discursos da dialogia.
De
Gramsci, tais pesquisadores foram colher uma das mais fecundas
idéias: toda hegemonia – e a mídia é lugar de discursos hegemônicos
– implica necessariamente em uma contra-hegemonia. Ou seja, a
dominação não se faz somente pela ação dos mais fortes, mas em
relação, em processos de interação, com os “dominados”. Assim, para
cada discurso hegemônico existe um contra-hegemônico, com o qual o
dominante precisa lidar. Essa relação entre hegemonia e
contra-hegemonia pode se dar pelo conformismo ou pela resistência,
na concepção marxista mais rasa, ou, no refinamento proposto pelo
próprio Gramsci, pela força e também pelo consenso, ou seja, implica
em dominação mas também em negociação, em disputa e também em
aceitação, naquilo que Stuart Hall chama de um misto “entre conter e
resistir” e que Barbero chama de “jogo de sedução e negação”.
Para concluir, o que estamos propondo, a partir desses autores, é
uma visão acerca da mídia em que ela seja pensada como lugar de
hegemonia mas também de contra-hegemonia, de disputas pelo controle
do discurso, pelo direito de construir significados para a realidade
social, de lutas por poder. Partilhamos, com esses e outros autores,
da idéia de que a luta de classes está se deslocando, cada vez mais,
do campo explícito das relações de produção ou das disputas
partidárias para o campo da cultura, onde a mídia ocupa lugar
central. Por isso precisamos discuti-la cada vez mais, por isso a
importância de eventos como esse. Mas é preciso levar em conta que
não basta compreendermos a mídia como lugar de alienação e
manipulação, pois com isso perdemos de vista a riqueza do processo
social, em que sujeitos concretos, históricos, estão vivendo e
construindo suas realidades, num jogo de estratégias e táticas, no
sentido proposto por Michel de Certeau, que não cabe em esquemas
reducionistas do tipo maniqueísta e polarizado. Esvaziar o lugar dos
sujeitos na práxis social é negar o próprio lugar da história e da
dialética na construção da realidade social. Isso, como já havia
apontado o próprio Marx, só serve ao poder dominante, pois é, como
toda ideologia no sentido marxista, alienação e mascaramento da
realidade. Combater a dominação, portanto, requer que se reconheça a
dialética do mundo, e, portanto, o lugar dos sujeitos sociais,
inclusive dos receptores, neste processo histórico.
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