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DISPOSITIVOS PSI, SISTEMA PENAL E NEOLIBERALISMO

 Cristina Rauter

Professora do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal Fluminense

                 As relações entre a Psicologia, a Psiquiatria, a Psicanálise e o Sistema Penal, são complexas. Muitas vezes se confunde, achando que esses saberes trouxeram para este campo a humanização, a adoção de estratégias de tratamento, de re-inserção social. Por vezes tem-se a ilusão de que se uma pessoa que cometeu um crime for diagnosticada como doente mental, isso concorrerá para que tenha uma punição mais branda. Ora, o que Foucault nos mostrou é que o processo que ele chamou de “colonização” do direito pelas ciências humanas, que se iniciou ainda no século XIX, trouxe para esse campo não a humanização, não a adoção de técnicas modernas de tratamento alternativas às penas que as tornasse menos rigorosas, mas a adoção de novas técnicas de vigiar e punir, mais sutis, menos violentas à primeira vista, mas muito mais eficazes no sentido da produção de “indivíduos úteis e dóceis” aos interesses do capitalismo. É preciso, no entanto, fazer a ressalva de que essa sutileza, essa tecnologia de “mãos limpas” não alcançou o terceiro mundo com as mesmas cores e formas. Aqui nunca nos livramos das nossas fétidas prisões, muito mais masmorras do que do panpticons de Bentham, embora hoje já tenhamos alguns tipos de masmorras mais panopticas, os chamados Presídios de Segurança Máxima, com suas cores mais cinzentas e seus espaços um tanto mais racionalizados. Por outro lado, não podemos dizer que essas inovações científicas, condensadas numa nova disciplina, a mais utilitária dentre as ciências humanas, a Criminologia, não tenha sido incorporada às nossas realidades carcerárias. Elas o foram de um forma inteiramente peculiar, de uma forma verdadeiramente antropofágica, bizarra. Com o código penal de 1940 o critério da periculosidade passa a orientar as decisões dos juízes e cria-se a figura da medida de segurança. Aos inimputáveis está reservado um tratamento cujo término dependerá de uma avaliação técnica, e que pode ser sempre negativa e levar à prisão perpétua, a um tratamento inxistente atrás das grades de um manicômio judiciário. Adotamos até a década de 80 um curioso dispositivo conhecido como “Duplo Binário” no qual o condenado semi-imputável recebia uma pena e depois o tratamento.... Este nosso modo de implantação bizarra das modernidades da ciência criminológica positivista levou a que as penas pudessem se tornar verdadeiramente indeterminadas, o que fora reclamado desde o início pela “moderna” corrente penal que propunha que atrás de todo criminoso se escondia um doente, um anormal. Para estes anormais, as penas comuns, aplicadas tendo-se em conta os princípios democráticos da tradição liberal do direito não funcionavam!.Eram penas que só terminavam com uma avaliação técnica favorável, que desse como cessada a periculosidade.

 

                Assim, o casamento das ciências humanas com o direito penal gerou vários frutos, dentre os quais: multiplicou a necessidade de avaliações ténicas sobre personalidade do apenado, que têm como efeito, muitas vezes, uma enorme burocratização do sistema. Assim, um detento pode ficar aguardando anos a realização de um exame criminológico, que pela falta de técnicos pode prolongar a pena por longo tempo. Porém, mesmo que tudo funcionasse às mil maravilhas, de forma desburoratizada, ainda assim essas avaliações trariam consigo outros problemas. Um dos efeitos desse discurso técnico, cientificista, é despolitizar a questão do crime definindo como anormalidade e confundindo entre si todas as formas de oposição e contestação populares. Outro é permitir que se estabeleçam formas de punição cada vez mais distantes do ato efetivamente praticado pelo infrator, e mais próxima de categorias vagas que permitem incriminar e estigmatizar os setores mais pobres da população, de forma cada vez mais distante de quaisquer direitos ou garantias democráticas.

 

No Século XXI os dispositivos psi entraram numa nova etapa. Com o advento do neoliberalismo, esses espaços fechados tornam-se subitamente “fora de moda”. Se o estado deve ser mínimo, não pode gastar recursos nem mesmo para aprisionar. Ao menos deve racionaliza-los. Os manicômios, os grandes hospitais psiquiátricos, todos esses antigos espaços para onde se enviava os inúteis do capitalismo produtivo, devem agora ceder lugar a um outro modelo. O discurso da recuperação entra em franca decadência, em prol de um discurso de defesa da lei e da ordem. Clama-se por punições mais severas e eficazes. Elas não precisam ser legítimas. “Defesa da Ordem Pública”: assim se fundamenta o direito de encarcerar camelôs, segundo ouvi de um trabalho realizado por duas advogadas num evento que organizamos na Uff no ano passado sobre Redução de Danos. Como disse Deleuze: pobres demais para a dívida, numerosos demais para a prisão, referindo-se ao que chamou de “sociedades de controle”. O controle social se dará muito mais a céu aberto do que nos espaços ainda fechados dos dispositivos disciplinares O extermínio, tal como o vemos ocorrer nas favelas cariocas, é com certeza uma estratégias da sociedade de controle “à brasileira” para lidar com esses miseráveis em número excessivo. Não há como torna-los úteis, não se deseja reinserí-los num sistema que prescinde de mão de obra. Por outro lado, eles devem ser devidamente mapeados e separados segundo critérios ainda de periculosidade, mas hoje recebendo nomes mais descritivos, como querem as novas nosografias psiquiátricas do CID 10, que se pretendem objetivas e científicas: transtornos anti-sociais, situações de risco social... Os dispositivos psis são úteis nesse processo de triagem. Uma tese de doutorado em psiquiatria defendida na USP em 2003 valida para o Brasil uma escala (A Escala Hare) para o diagnóstico das personalidades anti-sociais. A utilidade da escala é realizar o diagnósticos nas prisões visando a concessão ou não de benefícios e a entrada ou não em programas de reeducação. Vejamos aqui a função do diagnóstico psiquiátrico: antes de tudo a realização de um triagem. Na sociedade de controle o que se quer é mapear os espaços, separar criminosos de homens de bem, e entre os criminosos, os recuperáveis e dos irrecuperáveis. Mas não se quer investir em estratégias de recuperação, re-inserção. Ou antes se quer reservá-las para aqueles que darão um “retorno” certo.  A decadência do discurso da recuperação no momento atual, no contexto do neoliberalismo, traz consigo o retorno de métodos e técnicas que visam antes de tudo a estigmatização e a mortificação dos espaços de encarceramento, apontando muito mais para o extermínio do que para estratégias de tratamento ou recuperação, ainda que exibindo uma fachada de cientificidade fornecida pelos dispositivos psi.

 

  


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