PROIBICIONISMO EM MATÉRIA DE DROGAS: A CRIMINALIZAÇÃO GLOBALIZADA
Maria Lúcia Karam
I. Proibicionismo,
criminalização e expansão do poder punitivo
O
proibicionismo voltado contra as selecionadas substâncias
psicoativas e matérias primas para sua produção rotuladas de “drogas
ilícitas” é, hoje, a mais eloqüente expressão do que se poderia
chamar de um processo globalizado de criminalização e um dos
principais – se não o principal – impulsionadores da expansão do
poder punitivo por todo o mundo.
O proibicionismo
dirigido contra as drogas qualificadas de ilícitas se expressa
internacionalmente nas três Convenções das Nações Unidas sobre a
matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre
entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi
revista através de um protocolo de 1972; o Convênio sobre
substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas
contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias
psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena).
Tais diplomas, contendo as diretrizes seguidas pela legislação
brasileira, como pelas legislações dos mais diversos Estados
nacionais, pretendem restringir a fins exclusivamente médicos e
científicos a produção, a distribuição (aí incluído não só o
comércio, mas qualquer forma de fornecimento ou entrega a terceiros)
e o consumo das selecionadas substâncias e matérias primas tornadas
ilícitas, mediante a criminalização de condutas relacionadas àquelas
atividades que se realizem com quaisquer outros fins.
A
primeira ação internacional destinada a promover uma proibição
coordenada à produção, à distribuição e ao consumo de selecionadas
substâncias psicoativas e suas matérias primas remonta ao início do
século XX, tendo sido sistematizada na Convenção Internacional sobre
o Ópio, adotada pela Liga das Nações, em Haia em 23 de janeiro de
1912. No artigo 20 daquele diploma, recomendava-se aos Estados
signatários que examinassem a possibilidade de criminalização da
posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados.
As tendências
repressivas foram se aprofundando, especialmente com os diplomas
editados já sob a égide da ONU, e chegam a seu auge com a Convenção
de Viena de 1988.
A Convenção de
Viena nitidamente se inspira na política de "guerra às drogas",
iniciada naquela década de 80 do século XX. Tal guerra não é apenas
contra as drogas, dirigindo-se sim, como quaisquer guerras, contra
pessoas, aqui contra as pessoas dos produtores, distribuidores e
consumidores das substâncias e matérias primas proibidas. Essa
política belicista explicita, em sua própria denominação, as
tendências expansionistas do poder punitivo que se consolidam
globalmente a partir das últimas décadas do século XX.
Os
desequilíbrios provocados pela reformulada estrutura produtiva do
capitalismo, em sua etapa pós-industrial e globalizada; as
necessidades de controle do crescente número de marginalizados,
excluídos das próprias atividades produtivas; os anseios por
segurança, reforçados pelas novas possibilidades técnicas da
comunicação favorecedoras de uma percepção globalizada e assustadora
dos riscos, geram uma uniforme e funcional resposta que, manejada
por quase todos os políticos dos mais variados matizes, se expressa
em uma agigantada intervenção do sistema penal.
A amplitude da
adesão aos vigentes diplomas internacionais que contêm as imposições
criminalizadoras em matéria de drogas é ilustrativa. A diversidade
de conjunturas, a diversidade de governos, os confrontos
político-ideológicos não impediram que os mais diferentes países - a
imensa maioria dos Estados membros da Organização das Nações Unidas
- se unissem para elaborar e ratificar aqueles diplomas.
Os funcionais
discursos proibicionista e criminalizador, globalmente se
encontrando na política de "guerra às drogas", forneceram o primeiro
fundamento legitimador das atuais tendências expansionistas do poder
punitivo. Embora, após os atentados de 11 de setembro de 2001, o
terrorismo surja como uma nova e mais fácil fonte de legitimação,
aquele primeiro fundamento não foi abandonado.
Assim legitimado,
o controle social exercido através do sistema penal, mais e mais,
incorpora estratégias e práticas que identificam o anunciado
enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra tornada preventiva
ou ao combate a dissidentes políticos nos remanescentes Estados
totalitários. A figura do "inimigo" ou de quem tenha comportamentos
vistos como diferentes, “anormais” ou estranhos à moral dominante,
se ajusta nos perfis do "criminoso", do "terrorista" ou do "dissidente".
Uma propagandeada situação de emergência, representada no que se
refere ao sistema penal propriamente dito por um propagandeado
aumento incontrolável da criminalidade tradicional, ou por uma
suposta transnacionalidade criminosa, ou por uma indefinida e
indefinível "criminalidade organizada", dá lugar a uma sistemática
produção de autoritárias legislações de exceção que, abandonando
princípios garantidores, criam vácuos, que progressivamente se
ampliam, nos quais é indevidamente desprezado o imperativo primado
das declarações universais de direitos e dos princípios e normas
constitucionais dos Estados democráticos.
Embora mantidas as
estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando o Estado
policial sobrevivente em seu interior, vão sendo instituídos espaços
de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias, acabando
por fazer com que, no campo do controle social exercido através do
sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários
vá se tornando sempre mais tênue.
II. Proibições,
criminalizações e danos aos direitos fundamentais: as imposições
criminalizadoras das Convenções da ONU e da legislação brasileira em
matéria de drogas
O desautorizado abandono
de princípios e normas constantes das declarações universais de
direitos e das Constituições dos Estados democráticos faz-se
claramente presente nas leis penais especiais brasileiras, que,
seguindo as diretrizes ditadas nas Convenções da ONU,
especificamente se voltam para as drogas qualificadas de ilícitas –
a Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976 e a Lei 10.409, de 11 de
janeiro de 2002.[1]
Tramita no Senado
Federal o projeto de lei 7.134/02 (115/02 do Senado), já aprovado na
Câmara dos Deputados, com que se pretende substituir aquelas duas
leis. Tanto na lei de 2002, como nos dispositivos então vetados, ou
no projeto que tramita no Congresso Nacional, naturalmente, não há
qualquer alteração substancial na política oficial do Brasil, até
porque esta permanece seguindo as diretrizes constantes das
convenções internacionais.
O desautorizado
abandono de princípios e normas constantes das declarações
universais de direitos e das Constituições dos Estados democráticos
se repete em dispositivos de outras leis penais especiais também
aplicáveis às criminalizadas condutas relacionadas à produção e à
distribuição das drogas qualificadas de ilícitas: a Lei 8.072/90 que,
dispondo sobre os crimes ditos “hediondos” e os a eles equiparados,
marca o início da produção de leis de emergência ou de exceção após
a redemocratização do Brasil; a Lei 9.034/95, que, inspirada pelo
pretexto de repressão à “criminalidade organizada”, naturalmente,
nem em sua versão original, nem com as modificações introduzidas
pela Lei 10.217/01, conseguiu definir o que seja tal indefinível
fenômeno; a Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação de
comunicações telefônicas e em sistemas de informática e telemática;
a Lei 9.613/98, que criminaliza a chamada “lavagem” de capitais.
Nas convenções da
ONU em matéria de drogas, o abandono de princípios e normas
constantes das declarações universais de direitos e das
Constituições democráticas aparece, desde logo, na antecipação do
momento criminalizador da produção e da distribuição, revelada tanto
na tipificação de meros atos preparatórios como a associação ou a
“confabulação” para cometer o chamado “tráfico”, quanto no abandono
das fronteiras entre consumação e tentativa, com a tipificação
autônoma de condutas como a posse, o transporte ou a expedição das
substâncias e matérias primas proibidas.[2]
Essa criminalização antecipada, reproduzida na legislação brasileira,
como em legislações dos mais diversos países, viola o princípio da
lesividade da conduta proibida, que é expressão do princípio da
proporcionalidade extraído do aspecto material da cláusula do devido
processo legal.[3]
A Convenção de
Viena ainda considera autonomamente a organização, a gestão ou o
financiamento de qualquer dos crimes identificados ou relacionados
ao “tráfico”. A vulneração do princípio da proporcionalidade aqui se
repete na previsão, como tipos autônomos, de condutas inseridas no
âmbito de um tipo de crime já definido, que poderiam, quando muito,
funcionar como circunstâncias agravantes da pena a esse cominada.
Repete-se ainda nas penas delirantemente altas, igualadas ou mesmo
superiores às previstas para um homicídio, encontradas em diversas
legislações, como na proposta vinda no projeto de lei que tramita no
Congresso brasileiro, em que a indevida consideração da associação,
da organização, da gestão ou do financiamento voltados para o dito "tráfico"
como tipos autônomos de crimes serve como suposta manifestação da
propagandeada mas sempre indefinida e indefinível “criminalidade
organizada”.
Adicionando
tipificações, a Convenção de Viena introduz a figura de uma
receptação específica ou "reciclagem", origem das tipificações em
legislações de diversos países da chamada "lavagem" de capitais, que
se tornaram campo fértil para o excesso punitivo, inclusive na
criminalização de pós-fatos absorvíveis pelo crime antecedente.
A Convenção de Viena
introduz ainda como figuras autônomas a instigação ou a indução em
público, por qualquer meio, ao cometimento das condutas relacionadas
ao "tráfico" ou à utilização das drogas qualificadas de ilícitas.
Tipificações assim vagas, que, na legislação brasileira, aparecem em
regras constantes da Lei 6.368/76,[4]
equivalem à indefinição da conduta proibida, o que conflita com o
princípio da legalidade.[5]
Nos diplomas
internacionais, o rigor penal se expressa desde a recomendação de
aplicação preferencial de pena privativa de liberdade, que já
aparece na Convenção de 1961. No aprofundamento da repressão, a
Convenção de Viena de 1988 introduz um extenso rol de circunstâncias
qualificadoras,[6]
que, também adotadas na legislação brasileira,[7]
elevam as penas previstas para os tipos básicos de crimes do dito "tráfico",
freqüentemente já fixadas em quantidade excessivamente alta.
Ressalte-se que o projeto que tramita no Congresso brasileiro
pretende aumentar a pena privativa de liberdade para os tipos
básicos de crimes de “tráfico” dos atuais 3 a 12 anos de reclusão
para 5 a 15 anos.[8]
Na previsão dessas
causas de aumento da pena, a Convenção de Viena inclui a
reincidência, assim não só se incompatibilizando com o princípio da
culpabilidade pelo ato realizado, como conflitando com a garantia da
vedação de dupla punição pelo mesmo fato.[9]
Na Convenção de 1988, o
rigor penal se expressa ainda em recomendações de restrições ao
livramento condicional e adoção de prazos diferenciados para uma
prescrição que se quer prolongada.[10]
Assim estabelecendo um tratamento diferenciado para apontados
autores de crimes relacionados às drogas qualificadas de ilícitas, a
partir tão somente da consideração desta espécie abstrata de crime,
sem qualquer relação com a finalidade e os fundamentos dos
institutos considerados, a Convenção de Viena conflita com o
princípio da isonomia.[11]
A legislação
brasileira não prevê prazos diferenciados para a prescrição, mas,
além de adotar as recomendadas restrições ao livramento condicional,
em dispositivo introduzido no Código Penal pela Lei 8.072/90,[12]
ainda impôs, naquela mesma “hedionda” lei, o regime fechado
obrigatório para o cumprimento da pena privativa de liberdade,[13]
em dispositivo cuja manifesta inconstitucionalidade, por violação ao
princípio da isonomia e ao princípio da individualização da pena,[14]
só recentemente foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal.[15]
Em matéria
processual, a Convenção de Viena recomenda expressamente que as
Partes se esforcem para que faculdades legais de seus ordenamentos
jurídicos sejam voltadas para a investigação e a repressão.[16]
A função maior do ordenamento jurídico no Estado de direito é
limitar o exercício do poder estatal, submetendo à lei aqueles que o
exercem, com vista a garantir a dignidade e, assim, a liberdade e o
bem-estar de cada indivíduo. A prevalência da tutela da liberdade
sobre o poder punitivo está na origem de todos os princípios
garantidores enumerados nas declarações universais de direitos e nas
Constituições democráticas. Pretender voltar as “faculdades legais
de ordenamentos jurídicos para a investigação e a repressão”
significa pura e simplesmente inverter as bases do ordenamento
processual penal do Estado de direito.
Essa inversão proposta
na Convenção de Viena se espraia em legislações de diversos Estados
nacionais, que desprezam a garantia do estado de inocência,[17]
ao inverterem o princípio da excepcionalidade da prisão imposta no
curso do processo, para tornar a prisão preventiva ou outras formas
de prisão processual a regra ou uma imposição. No Brasil,
dispositivos constantes das Leis 8.072/90, 9.613/98 e 9.034/95,[18]
além de vedarem a liberdade provisória, assim instituindo uma prisão
processual obrigatória, transformam em exceção a permanência em
liberdade do réu condenado em sentença recorrível. Restrições ao
direito de recorrer, como o condicionamento da admissibilidade do
recurso ao recolhimento à prisão, além de violarem a garantia do
estado de inocência, violam ainda a garantia do acesso ao duplo grau
de jurisdição.[19]
Ainda em matéria
processual, a Convenção de Viena prevê a quebra do sigilo bancário e
a "técnica de entrega vigiada",[20]
meios de busca de prova invasivos da pessoa e contraditórios com a
transparência e a ética exigidas das atividades estatais no Estado
de direito democrático.
Legislações dos mais
diversos países, aí incluído o Brasil, ampliam o rol desses
insidiosos meios de busca de prova, contemplando a quebra do sigilo
de dados pessoais (onde se inclui a quebra do sigilo bancário), a
interceptação de correspondências e de comunicações telefônicas, as
escutas e filmagens ambientais, a infiltração e a ação controlada ou
retardada de agentes policiais (onde se inclui a "técnica de entrega
vigiada") e a delação premiada.[21]
Para insidiosa e indevidamente obter a verdade através do próprio
indivíduo que se pretende venha a sofrer a pena, o expandido poder
punitivo assim espalha instrumentais de escuta, de interceptação de
comunicações, câmeras ocultas, intensificando o controle e atingindo
a liberdade e a intimidade, não apenas daquele que está sendo
investigado ou processado, mas de todos os indivíduos.
Para insidiosa e indevidamente obter a verdade através do próprio
indivíduo que se pretende venha a sofrer a pena, o expandido poder
punitivo, infiltrando seus agentes, instigando, promovendo ou
retardando a interrupção de condutas tidas como criminosas, faz da
obtenção de maiores informações e provas um obsessivo objetivo que,
paradoxalmente, incentiva, realiza ou prolonga as próprias ações
proibidas que anuncia querer controlar. A irracionalidade, inerente
ao sistema penal, aqui chega a seu auge.
Para insidiosa e indevidamente obter a verdade, para obter a
colaboração do indivíduo investigado ou processado, em “negociações”
de direitos que não conseguem ocultar seu parentesco com a chantagem,
o expandido poder punitivo elogia e premia a delação, deseducando e
transmitindo valores tão ou mais negativos do que os valores dos
apontados "criminosos" que diz querer enfrentar.
Esses novos meios de
busca de prova – expressão no campo do controle social dos avanços
da revolução científico-tecnológica – revelam, no entanto, um antigo
objetivo: o de fazer com que, através do próprio indivíduo, se
obtenha a verdade sobre suas ações tornadas criminosas. Desta forma,
o processo penal retrocede no tempo, acabando por reconduzir a
confissão ao trono de rainha das provas e acabando por violar,
direta ou indiretamente, a garantia do direito a não se auto-incriminar.[22]
Seguindo
orientação que parece tirada dos manuais da Inquisição, este
processo penal da "pós-modernidade" faz lembrar das bruxas e hereges,
que, se não persuadidos, deviam se submeter à tortura, para, de uma
forma ou de outra, revelar a verdade através da confissão. O toque "pós-moderno",
mais "civilizado", apenas substitui a tortura oficial por formas
mais "científicas" e fisicamente indolores de intervenção sobre a
pessoa, mas sempre mantendo o mesmo objetivo de viabilizar a pena
através de revelações ou da colaboração daquele que irá sofrê-la.
A Convenção de Viena
explicita a imposição da criminalização da posse para uso pessoal
das substâncias e matérias primas tornadas ilícitas.[23]
Ao tratar das penas,[24]
admite, como já o fazia a Convenção de 1961, a aplicação ao
consumidor de medidas de tratamento, educação, pós-tratamento,
reabilitação ou reinserção social, substitutivas ou complementares à
condenação.
O
aparente abrandamento, que estaria a se contrapor ao rigor punitivo
destinado ao dito "tráfico", não esconde, porém, a violação ao
princípio da lesividade. Tampouco esconde o conflito com as normas
das declarações universais de direitos que asseguram o respeito à
vida privada.[25]
Tais normas se vinculam ao enunciado genérico do princípio da
legalidade[26]
que submete o exercício do poder estatal a determinações legais e
assegura a liberdade individual como regra geral, situando
proibições e restrições no campo da exceção e condicionando-as à
garantia do livre exercício de direitos de terceiros.
A simples posse
para uso pessoal das drogas qualificadas de ilícitas, ou seu consumo
em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e
imediato para terceiros, são condutas que não afetam nenhum bem
jurídico alheio, dizendo respeito unicamente ao indivíduo, à sua
intimidade e às suas opções pessoais. Não estando autorizado a
penetrar no âmbito da vida privada, não pode o Estado intervir sobre
condutas de tal natureza, ainda mais através da imposição de uma
sanção, qualquer que seja sua natureza ou sua dimensão. Enquanto não
afetar concretamente direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e
fazer o que bem quiser.
A desautorizada
interferência na vida privada manifesta-se, portanto, não só em
legislações nacionais que reproduzem a imposição explicitamente
criminalizadora da Convenção de Viena, como a legislação brasileira
vigente e proposta,[27]
mas também em legislações que, aparentemente mais liberais,
administrativizam a proibição, sem, no entanto, afastá-la.
Ao
promover a artificial diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas,
selecionando algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas e
matérias primas para sua produção e tornando-as objeto de proibição,
as Convenções da ONU incluem dentre as substâncias e matérias primas
proibidas plantas tradicionalmente cultivadas e utilizadas por
comunidades indígenas, como é o caso, na América Latina, da folha de
coca nos Andes.
As
permissões extremamente limitadas para seu uso lícito e o objetivo
de erradicação das plantações, além de afetarem o ambiente e as
condições materiais de vida dos integrantes daquelas comunidades,
resultam na restrição ou mesmo no impedimento de atividades
significativas no âmbito de suas tradições e seu patrimônio
cultural. A proibição assim entre em conflito direto com a norma do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que assegura às
minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas o direito a usufruir de
sua própria cultura.
[28]
III. Proibições,
criminalizações e danos aos direitos fundamentais: a militarização
da repressão no Brasil
Inspirando-se na
“guerra contra as drogas”, a política brasileira no campo das drogas
qualificadas de ilícitas tem como órgão responsável, desde 1998, a
Secretaria Nacional Antidrogas, que, dirigida por militares, se
subordina ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da
República, órgão que, sucedendo, desde 1999, a Casa Militar da
Presidência da República, não perdeu o caráter militarista explícito
naquela. A própria denominação da
Secretaria – “Antidrogas” – já sugere uma visão distorcida e
delirante sobre as substâncias psicoativas, visualizadas
militarmente como se fossem o “inimigo”.
O caráter
militarizado da política brasileira se explicita em ilegítimas ações
desenvolvidas pelo Exército, como as operações que vêm se repetindo
na cidade do Rio de Janeiro, em claro desvio das funções que a
Constituição Federal atribui às Forças Armadas. Resultando na
ocupação de favelas como se fossem territórios inimigos, essas
ilegítimas ações militares sequer disfarçam a identificação dos
excluídos e marginalizados como perigosos, tradicionalmente feita de
forma mais sutil através do normal funcionamento do sistema penal.
Mas a
repressão militarizada se expressa de forma ainda mais grave na
regulamentação, em 2004, de dispositivos do Código Brasileiro de
Aeronáutica,[29]
para concretizar a previsão de abate de aeronaves suspeitas de
“tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas. A regulamentação
institui, de forma oblíqua, uma verdadeira pena de morte (a morte
sendo conseqüência praticamente certa do abate), que, vedada pela
Constituição brasileira,[30]
além disso, estará sendo imposta antecipadamente, sem processo, por
mera autorização do Comandante da Aeronáutica.
IV. Os danos e
enganos do proibicionismo
As Convenções da
ONU e as legislações dos Estados nacionais que expressam o
proibicionismo voltado contra as drogas qualificadas de ilícitas,
alimentando e sendo alimentadas por um enganoso discurso que
apresenta especialmente os produtores e distribuidores das drogas
qualificadas de ilícitas como um "inimigo" entrincheirado em uma
indefinida e indefinível "criminalidade organizada", para cujo "combate"
não bastaria a utilização de meios tradicionais ou regulares, pautam-se
por uma excepcionalidade que se traduz, como visto, na sistemática
violação de princípios e normas constantes das declarações
universais de direitos e das Constituições dos Estados democráticos,
na criação de vácuos em que afastada sua aplicação, verdadeiros
espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias.
Assim trazem à
lembrança a eloqüente advertência de Nils Christie,[31]
que mostra que o maior perigo da criminalidade nas sociedades
contemporâneas não é o crime em si mesmo. O maior perigo da
criminalidade, nos tempos atuais é sim o de que a repressão ao crime
acabe por conduzir todas essas sociedades ao totalitarismo.
No mesmo sentido,
pode-se afirmar que os maiores danos relacionados às drogas
qualificadas de ilícitas provêm do proibicionismo. São danos aos
direitos fundamentais, que estão a ameaçar a própria preservação do
modelo do Estado de direito democrático, demonstrando que, em
matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na
proibição.
É, pois, a própria
necessidade de preservação do modelo do Estado de direito
democrático que está a exigir que se retirem da ordem jurídica
internacional e interna de cada país as legislações proibicionistas
em matéria de drogas, totalitariamente negadoras de direitos
fundamentais.
O exercício de
poder, consubstanciado na proibição criminalizadora de condutas
relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo das drogas
qualificadas de ilícitas, se viabiliza através da artificial
distinção efetuada pela intervenção do sistema penal, que permite
apresentar as substâncias e matérias primas proibidas (como a
maconha, a cocaína, a heroína, a folha de coca) como se fossem
diferentes de outras substâncias psicoativas não proibidas (como o
álcool, o tabaco, a cafeína), permitindo, assim, que as substâncias
e matérias primas proibidas e condutas a elas relacionadas sejam
identificadas, como no preâmbulo da Convenção Única de 1961, como um
"flagelo", ou, como no preâmbulo da Convenção de Viena de 1988, como
um "perigo de incalculável gravidade”.
O
discurso emocional, assustador, demonizador, ocultando a
funcionalidade política e a finalidade real do sistema penal, oculta
ainda o perene fracasso de seus objetivos explícitos. Não há como
deixar de classificar como fracassado um sistema que promete a
proteção dos indivíduos, a evitação de condutas negativas e
ameaçadoras, o fornecimento de segurança, paz e tranqüilidade e que,
hoje, depois de séculos de funcionamento, busca a legitimação de um
maior rigor e um maior alcance em sua aplicação exatamente no
anúncio de um aumento incontrolado do número de crimes, de uma
diversificação e de maiores perigos advindos desta criminalidade
apresentada como crescentemente poderosa.
O
fracasso do proibicionismo, não só no campo das drogas qualificadas
de ilícitas, mas em suas diversas manifestações, também poderia ser
facilmente percebido, não fora a enganosa publicidade que igualmente
o sustenta. Nesse campo das drogas qualificadas de ilícitas, é a
própria ONU que aponta para o inegável fracasso na obtenção do
inviável - e, na realidade, indesejável - objetivo explícito de
construir "um mundo sem drogas", ao reconhecer, como o fez no
relatório divulgado em 29 de junho de 2005 em Viena, que, depois de
quase meio século de aplicação de suas Convenções, a circulação
mundial das proibidas substâncias psicoativas e matérias primas para
sua produção, não só não teria se reduzido, como, ao contrário,
teria se expandido.[32]
Ocultando o fracasso dos anunciados objetivos explícitos, a enganosa
publicidade oculta ainda os paradoxos, como o fato da proteção da
saúde pública, que estaria a formalmente fundamentar a
criminalização das condutas relacionadas às drogas qualificadas de
ilícitas, ser afetada por esta mesma criminalização.
Impondo a clandestinidade à produção, à distribuição e ao consumo, o
proibicionismo criminalizador impede o controle de qualidade das
substâncias comercializadas, aumentando as possibilidades de
adulteração, de impureza e de desconhecimento de sua potência, com
os riscos maiores daí decorrentes. A intervenção do sistema penal,
estendendo-se ao momento do consumo das drogas tornadas ilícitas,
igualmente repercute sobre as condições em que tal consumo se
realiza. Além de dificultar a informação e a assistência, a
clandestinidade conseqüente à intervenção do sistema penal cria a
necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que
permitam um consumo que não seja descoberto, o que acaba por se
tornar um caldo de cultura para o consumo descuidado e não higiênico,
cujas conseqüências aparecem de forma mais dramática na difusão de
doenças transmissíveis como a Aids e a hepatite.
Desvinculando-se de reais preocupações com a saúde pública, que
enganosamente anuncia pretender proteger, o proibicionismo
criminalizador, demonizando as substâncias proibidas, ainda impõe
obstáculos até mesmo a seu livre emprego com fins terapêuticos, como
no uso da maconha para aliviar dores, náuseas e perda de apetite em
pacientes com Aids ou sob tratamento quimioterápico. E isto acontece
não obstante a produção, a distribuição e o consumo com este fim
terapêutico estarem, da mesma forma que as ações de redução de danos,
fora do campo de incidência de qualquer norma criminalizadora, na
medida em que não afetam a saúde pública, mas, ao contrário, reduzem
os riscos àquele bem jurídico. O paradoxo é tal que isto acontece
não obstante tais ações estarem situadas ainda fora do campo de
incidência da proibição traduzida nas Convenções da ONU, na medida
em que se realizam exatamente com o fim médico a que aqueles
diplomas internacionais pretendem condicionar a legalidade da
produção, da distribuição e do consumo das substâncias e matérias
primas proibidas.
Ocultando a funcionalidade política e a real finalidade de
proibições e criminalizações, ocultando o fracasso de seus
anunciados objetivos explícitos, ocultando paradoxos, o
proibicionismo criminalizador oculta não só os riscos e os danos aos
direitos fundamentais e à subsistência do modelo do Estado de
direito democrático, oculta não só os próprios riscos e danos à
saúde pública, mas também o fato de que a intervenção do sistema
penal no mercado produtor e distribuidor das substâncias e matérias
primas proibidas traz a violência como um seu corolário.
Ao contrário do
que propaga o proibicionismo, não são as drogas que geram violência.
É sim o próprio fato da ilegalidade que produz e insere no mercado
empresas criminalizadas, simultaneamente trazendo a violência como
um subproduto de que devem se valer não apenas para o enfrentamento
da repressão, mas também, dada a ausência de regulamentação e a
conseqüente impossibilidade de acesso aos meios legais, como forma
necessária de resolução dos naturais conflitos surgidos no decorrer
de suas atividades econômicas.
V. O necessário
rompimento com o proibicionismo
O proibicionismo
somente se sustenta pelo entorpecimento da razão.
Somente uma razão
entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de
produtores, distribuidores e consumidores de algumas dentre as
inúmeras substâncias psicoativas, artificialmente selecionadas para
serem objeto da proibição, sirva para deter uma busca de meios de
alteração do psiquismo, que deita raízes na própria história da
humanidade.
Somente uma razão
entorpecida pode admitir que, em troca de uma ilusória contenção
desta busca, o próprio Estado fomente a violência, que só se faz
presente nas atividades de produção e distribuição das drogas
qualificadas de ilícitas porque seu mercado é ilegal.
Somente uma razão
entorpecida pode autorizar que, sob este mesmo ilusório pretexto, se
imponham restrições à liberdade de quem, eventualmente, queira
causar um dano à sua própria saúde.
Somente uma razão
entorpecida pode conciliar com uma expansão do poder de punir, que,
crescentemente desrespeitando clássicos princípios garantidores,
ameaça os próprios fundamentos do Estado de direito democrático.
Já é hora, pois,
de recobrar a razão e romper com o proibicionismo. Já é hora de
propor e efetivar uma ampla reformulação das Convenções
internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais,
para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as
substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção,
regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais
de controle, verdadeiramente comprometidas com a promoção da saúde
pública, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os
indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.
[7]
Lei 6.368/76 (Art.18).
[12]
Artigo 83, inciso V do Código Penal brasileiro.
[18]
Tais
dispositivos legais estão sendo questionados perante o Supremo
Tribunal Federal, sendo boas as perspectivas de que, também
nessa matéria, seja reformulada posição anterior do Tribunal
para que, enfim, se tenha a declaração de sua manifesta
inconstitucionalidade.
[21]
Na legislação brasileira, a partir de sua previsão na Lei
9.034/95, a quebra do sigilo de dados pessoais foi se
generalizando, estando prevista inclusive na específica Lei
10.409/02. Regras constantes da Lei 9.613/98 chegam a dar a
órgãos do Poder Executivo o poder de conhecer toda transação
financeira, superior a limite por estes mesmos fixados,
realizada por qualquer indivíduo, independentemente da
existência de qualquer investigação a respeito de eventuais
condutas puníveis. A interceptação de comunicações telefônicas e
em sistemas de informática e telemática foi introduzida no
Brasil com a Lei 9.296/96, que, na elasticidade dos requisitos
que estabelece, praticamente transforma em regra investigatória
este meio excepcional de busca de prova. A específica Lei
10.409/02, remetendo à Lei 9.034/95, também prevê a
interceptação e a gravação das comunicações telefônicas. A Lei
10.217/01, acrescentando regra à Lei 9.034/95, introduziu a
previsão da escuta e da filmagem ambientais. Foi também a Lei
9.034/95 que introduziu a ação controlada de agentes policiais
como meio de investigação No mesmo diploma, modificações vindas
com a Lei 10.217/01fizeram ressurgir de forma ampliada a
previsão da infiltração de agentes policiais, que, originalmente,
fora objeto de veto do Presidente da República. A Lei 10.409/02
dá características específicas à infiltração e à ação controlada
de agentes policiais. A previsão da delação premiada com a
redução da pena do delator inaugura-se com a Lei 8.072/90, sendo
repetida nos diplomas legais posteriores, que, com aquela
“hedionda” lei, compõem a legislação brasileira de emergência ou
de exceção. A específica Lei 10.409/02 ampliou o prêmio,
prevendo hipótese de deixar o juiz de aplicar a pena, e, até
mesmo, a hipótese de deixar o Ministério Público de propor a
ação penal, incentivando acordos entre Ministério Público e
indiciado ou réu, com vista à prática da delação.
[27]
Na legislação brasileira, a criminalização da posse para uso
pessoal das drogas qualificadas de ilícitas aparece na Lei
6.368/76. As penas previstas são detenção de 6 meses a 2 anos e
multa. Dada a pena máxima prevista, a indevidamente
criminalizada posse para uso pessoal enquadra-se na definição de
infração penal de menor potencial ofensivo dada pela Lei
10.259/01, sendo aplicáveis as regras contidas na Lei 9.099/95,
que prevêem a imposição antecipada e “negociada” de penas não
privativas da liberdade, ou a suspensão do processo, por um
prazo de dois a quatro anos, e sua extinção, sem julgamento,
desde que cumpridas condições em tudo semelhantes àquelas penas
antecipadas não privativas da liberdade. No projeto de lei que
tramita no Congresso nacional, a criminalização permanece,
prevendo-se penas de advertência, prestação de serviços à
comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em
caso de descumprimento, outras penas não privativas de liberdade
e, ainda, uma esdrúxula configuração de crime de desobediência.
São previstas ainda hipóteses de submissão do agente a
tratamento médico obrigatório, tanto na vigente lei brasileira,
quanto no projeto que pretende substituí-la.
[29]
Veja-se o § 2º do artigo 303 da Lei 7.568/86,
acrescentado pela Lei nº 9.614, de 5.3.1998 e a regulamentação
efetuada pelo Decreto 5.144/04.
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