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PROIBICIONISMO EM MATÉRIA DE DROGAS: A CRIMINALIZAÇÃO GLOBALIZADA
 

Maria Lúcia Karam

 

 

I. Proibicionismo, criminalização e expansão do poder punitivo
 

                 O proibicionismo voltado contra as selecionadas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção rotuladas de “drogas ilícitas” é, hoje, a mais eloqüente expressão do que se poderia chamar de um processo globalizado de criminalização e um dos principais – se não o principal – impulsionadores da expansão do poder punitivo por todo o mundo.
 

O proibicionismo dirigido contra as drogas qualificadas de ilícitas se expressa internacionalmente nas três Convenções das Nações Unidas sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 1972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena).
 

                Tais diplomas, contendo as diretrizes seguidas pela legislação brasileira, como pelas legislações dos mais diversos Estados nacionais, pretendem restringir a fins exclusivamente médicos e científicos a produção, a distribuição (aí incluído não só o comércio, mas qualquer forma de fornecimento ou entrega a terceiros) e o consumo das selecionadas substâncias e matérias primas tornadas ilícitas, mediante a criminalização de condutas relacionadas àquelas atividades que se realizem com quaisquer outros fins. 
 

                A primeira ação internacional destinada a promover uma proibição coordenada à produção, à distribuição e ao consumo de selecionadas substâncias psicoativas e suas matérias primas remonta ao início do século XX, tendo sido sistematizada na Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada pela Liga das Nações, em Haia em 23 de janeiro de 1912. No artigo 20 daquele diploma, recomendava-se aos Estados signatários que examinassem a possibilidade de criminalização da posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados.
 

 As tendências repressivas foram se aprofundando, especialmente com os diplomas editados já sob a égide da ONU, e chegam a seu auge com a Convenção de Viena de 1988.
 

A Convenção de Viena nitidamente se inspira na política de "guerra às drogas", iniciada naquela década de 80 do século XX. Tal guerra não é apenas contra as drogas, dirigindo-se sim, como quaisquer guerras, contra pessoas, aqui contra as pessoas dos produtores, distribuidores e consumidores das substâncias e matérias primas proibidas. Essa política belicista explicita, em sua própria denominação, as tendências expansionistas do poder punitivo que se consolidam globalmente a partir das últimas décadas do século XX.
 

                Os desequilíbrios provocados pela reformulada estrutura produtiva do capitalismo, em sua etapa pós-industrial e globalizada; as necessidades de controle do crescente número de marginalizados, excluídos das próprias atividades produtivas; os anseios por segurança, reforçados pelas novas possibilidades técnicas da comunicação favorecedoras de uma percepção globalizada e assustadora dos riscos, geram uma uniforme e funcional resposta que, manejada por quase todos os políticos dos mais variados matizes, se expressa em uma agigantada intervenção do sistema penal.
 

A amplitude da adesão aos vigentes diplomas internacionais que contêm as imposições criminalizadoras em matéria de drogas é ilustrativa. A diversidade de conjunturas, a diversidade de governos, os confrontos político-ideológicos não impediram que os mais diferentes países - a imensa maioria dos Estados membros da Organização das Nações Unidas - se unissem para elaborar e ratificar aqueles diplomas.
 

Os funcionais discursos proibicionista e criminalizador, globalmente se encontrando na política de "guerra às drogas", forneceram o primeiro fundamento legitimador das atuais tendências expansionistas do poder punitivo. Embora, após os atentados de 11 de setembro de 2001, o terrorismo surja como uma nova e mais fácil fonte de legitimação, aquele primeiro fundamento não foi abandonado.
 

 Assim legitimado, o controle social exercido através do sistema penal, mais e mais, incorpora estratégias e práticas que identificam o anunciado enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra tornada preventiva ou ao combate a dissidentes políticos nos remanescentes Estados totalitários. A figura do "inimigo" ou de quem tenha comportamentos vistos como diferentes, “anormais” ou estranhos à moral dominante, se ajusta nos perfis do "criminoso", do "terrorista" ou do "dissidente".
 

                Uma propagandeada situação de emergência, representada no que se refere ao sistema penal propriamente dito por um propagandeado aumento incontrolável da criminalidade tradicional, ou por uma suposta transnacionalidade criminosa, ou por uma indefinida e indefinível "criminalidade organizada", dá lugar a uma sistemática produção de autoritárias legislações de exceção que, abandonando princípios garantidores, criam vácuos, que progressivamente se ampliam, nos quais é indevidamente desprezado o imperativo primado das declarações universais de direitos e dos princípios e normas constitucionais dos Estados democráticos. 
 

Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando o Estado policial sobrevivente em seu interior, vão sendo instituídos espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários vá se tornando sempre mais tênue.

               

II. Proibições, criminalizações e danos aos direitos fundamentais: as imposições criminalizadoras das Convenções da ONU e da legislação brasileira em matéria de drogas
 

O desautorizado abandono de princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das Constituições dos Estados democráticos faz-se claramente presente nas leis penais especiais brasileiras, que, seguindo as diretrizes ditadas nas Convenções da ONU, especificamente se voltam para as drogas qualificadas de ilícitas – a Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976 e a Lei 10.409, de 11 de janeiro de 2002.[1]
 

Tramita no Senado Federal o projeto de lei 7.134/02 (115/02 do Senado), já aprovado na Câmara dos Deputados, com que se pretende substituir aquelas duas leis. Tanto na lei de 2002, como nos dispositivos então vetados, ou no projeto que tramita no Congresso Nacional, naturalmente, não há qualquer alteração substancial na política oficial do Brasil, até porque esta permanece seguindo as diretrizes constantes das convenções internacionais.
 

O desautorizado abandono de princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das Constituições dos Estados democráticos se repete em dispositivos de outras leis penais especiais também aplicáveis às criminalizadas condutas relacionadas à produção e à distribuição das drogas qualificadas de ilícitas: a Lei 8.072/90 que, dispondo sobre os crimes ditos “hediondos” e os a eles equiparados, marca o início da produção de leis de emergência ou de exceção após a redemocratização do Brasil; a Lei 9.034/95, que, inspirada pelo pretexto de repressão à “criminalidade organizada”, naturalmente, nem em sua versão original, nem com as modificações introduzidas pela Lei 10.217/01, conseguiu definir o que seja tal indefinível fenômeno; a Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação de comunicações telefônicas e em sistemas de informática e telemática; a Lei 9.613/98, que criminaliza a chamada “lavagem” de capitais.
 

Nas convenções da ONU em matéria de drogas, o abandono de princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das Constituições democráticas aparece, desde logo, na antecipação do momento criminalizador da produção e da distribuição, revelada tanto na tipificação de meros atos preparatórios como a associação ou a “confabulação” para cometer o chamado “tráfico”, quanto no abandono das fronteiras entre consumação e tentativa, com a tipificação autônoma de condutas como a posse, o transporte ou a expedição das substâncias e matérias primas proibidas.[2] Essa criminalização antecipada, reproduzida na legislação brasileira, como em legislações dos mais diversos países, viola o princípio da lesividade da conduta proibida, que é expressão do princípio da proporcionalidade extraído do aspecto material da cláusula do devido processo legal.[3]
 

A Convenção de Viena ainda considera autonomamente a organização, a gestão ou o financiamento de qualquer dos crimes identificados ou relacionados ao “tráfico”. A vulneração do princípio da proporcionalidade aqui se repete na previsão, como tipos autônomos, de condutas inseridas no âmbito de um tipo de crime já definido, que poderiam, quando muito, funcionar como circunstâncias agravantes da pena a esse cominada. Repete-se ainda nas penas delirantemente altas, igualadas ou mesmo superiores às previstas para um homicídio, encontradas em diversas legislações, como na proposta vinda no projeto de lei que tramita no Congresso brasileiro, em que a indevida consideração da associação, da organização, da gestão ou do financiamento voltados para o dito "tráfico" como tipos autônomos de crimes serve como suposta manifestação da propagandeada mas sempre indefinida e indefinível “criminalidade organizada”.
 

Adicionando tipificações, a Convenção de Viena introduz a figura de uma receptação específica ou "reciclagem", origem das tipificações em legislações de diversos países da chamada "lavagem" de capitais, que se tornaram campo fértil para o excesso punitivo, inclusive na criminalização de pós-fatos absorvíveis pelo crime antecedente.
 

A Convenção de Viena introduz ainda como figuras autônomas a instigação ou a indução em público, por qualquer meio, ao cometimento das condutas relacionadas ao "tráfico" ou à utilização das drogas qualificadas de ilícitas. Tipificações assim vagas, que, na legislação brasileira, aparecem em regras constantes da Lei 6.368/76,[4] equivalem à indefinição da conduta proibida, o que conflita com o princípio da legalidade.[5]
 

Nos diplomas internacionais, o rigor penal se expressa desde a recomendação de aplicação preferencial de pena privativa de liberdade, que já aparece na Convenção de 1961. No aprofundamento da repressão, a Convenção de Viena de 1988 introduz um extenso rol de circunstâncias qualificadoras,[6] que, também adotadas na legislação brasileira,[7] elevam as penas previstas para os tipos básicos de crimes do dito "tráfico", freqüentemente já fixadas em quantidade excessivamente alta. Ressalte-se que o projeto que tramita no Congresso brasileiro pretende aumentar a pena privativa de liberdade para os tipos básicos de crimes de “tráfico” dos atuais 3 a 12 anos de reclusão para 5 a 15 anos.[8]
 

Na previsão dessas causas de aumento da pena, a Convenção de Viena inclui a reincidência, assim não só se incompatibilizando com o princípio da culpabilidade pelo ato realizado, como conflitando com a garantia da vedação de dupla punição pelo mesmo fato.[9]
 

Na Convenção de 1988, o rigor penal se expressa ainda em recomendações de restrições ao livramento condicional e adoção de prazos diferenciados para uma prescrição que se quer prolongada.[10] Assim estabelecendo um tratamento diferenciado para apontados autores de crimes relacionados às drogas qualificadas de ilícitas, a partir tão somente da consideração desta espécie abstrata de crime, sem qualquer relação com a finalidade e os fundamentos dos institutos considerados, a Convenção de Viena conflita com o princípio da isonomia.[11]
 

        A legislação brasileira não prevê prazos diferenciados para a prescrição, mas, além de adotar as recomendadas restrições ao livramento condicional, em dispositivo introduzido no Código Penal pela Lei 8.072/90,[12] ainda impôs, naquela mesma “hedionda” lei, o regime fechado obrigatório para o cumprimento da pena privativa de liberdade,[13] em dispositivo cuja manifesta inconstitucionalidade, por violação ao princípio da isonomia e ao princípio da individualização da pena,[14] só recentemente foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal.[15]
 

Em matéria processual, a Convenção de Viena recomenda expressamente que as Partes se esforcem para que faculdades legais de seus ordenamentos jurídicos sejam voltadas para a investigação e a repressão.[16]  A função maior do ordenamento jurídico no Estado de direito é limitar o exercício do poder estatal, submetendo à lei aqueles que o exercem, com vista a garantir a dignidade e, assim, a liberdade e o bem-estar de cada indivíduo. A prevalência da tutela da liberdade sobre o poder punitivo está na origem de todos os princípios garantidores enumerados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas. Pretender voltar as “faculdades legais de ordenamentos jurídicos para a investigação e a repressão” significa pura e simplesmente inverter as bases do ordenamento processual penal do Estado de direito.
 

Essa inversão proposta na Convenção de Viena se espraia em legislações de diversos Estados nacionais, que desprezam a garantia do estado de inocência,[17] ao inverterem o princípio da excepcionalidade da prisão imposta no curso do processo, para tornar a prisão preventiva ou outras formas de prisão processual a regra ou uma imposição. No Brasil, dispositivos constantes das Leis 8.072/90, 9.613/98 e 9.034/95,[18] além de vedarem a liberdade provisória, assim instituindo uma prisão processual obrigatória, transformam em exceção a permanência em liberdade do réu condenado em sentença recorrível. Restrições ao direito de recorrer, como o condicionamento da admissibilidade do recurso ao recolhimento à prisão, além de violarem a garantia do estado de inocência, violam ainda a garantia do acesso ao duplo grau de jurisdição.[19]
 

Ainda em matéria processual, a Convenção de Viena prevê a quebra do sigilo bancário e a "técnica de entrega vigiada",[20] meios de busca de prova invasivos da pessoa e contraditórios com a transparência e a ética exigidas das atividades estatais no Estado de direito democrático.

Legislações dos mais diversos países, aí incluído o Brasil, ampliam o rol desses insidiosos meios de busca de prova, contemplando a quebra do sigilo de dados pessoais (onde se inclui a quebra do sigilo bancário), a interceptação de correspondências e de comunicações telefônicas, as escutas e filmagens ambientais, a infiltração e a ação controlada ou retardada de agentes policiais (onde se inclui a "técnica de entrega vigiada") e a delação premiada.[21]
 

                Para insidiosa e indevidamente obter a verdade através do próprio indivíduo que se pretende venha a sofrer a pena, o expandido poder punitivo assim espalha instrumentais de escuta, de interceptação de comunicações, câmeras ocultas, intensificando o controle e atingindo a liberdade e a intimidade, não apenas daquele que está sendo investigado ou processado, mas de todos os indivíduos.
 

                Para insidiosa e indevidamente obter a verdade através do próprio indivíduo que se pretende venha a sofrer a pena, o expandido poder punitivo, infiltrando seus agentes, instigando, promovendo ou retardando a interrupção de condutas tidas como criminosas, faz da obtenção de maiores informações e provas um obsessivo objetivo que, paradoxalmente, incentiva, realiza ou prolonga as próprias ações proibidas que anuncia querer controlar. A irracionalidade, inerente ao sistema penal, aqui chega a seu auge.
 

                Para insidiosa e indevidamente obter a verdade, para obter a colaboração do indivíduo investigado ou processado, em “negociações” de direitos que não conseguem ocultar seu parentesco com a chantagem, o expandido poder punitivo elogia e premia a delação, deseducando e transmitindo valores tão ou mais negativos do que os valores dos apontados "criminosos" que diz querer enfrentar.

Esses novos meios de busca de prova – expressão no campo do controle social dos avanços da revolução científico-tecnológica – revelam, no entanto, um antigo objetivo: o de fazer com que, através do próprio indivíduo, se obtenha a verdade sobre suas ações tornadas criminosas. Desta forma, o processo penal retrocede no tempo, acabando por reconduzir a confissão ao trono de rainha das provas e acabando por violar, direta ou indiretamente, a garantia do direito a não se auto-incriminar.[22]
 

Seguindo orientação que parece tirada dos manuais da Inquisição, este processo penal da "pós-modernidade" faz lembrar das bruxas e hereges, que, se não persuadidos, deviam se submeter à tortura, para, de uma forma ou de outra, revelar a verdade através da confissão. O toque "pós-moderno", mais "civilizado", apenas substitui a tortura oficial por formas mais "científicas" e fisicamente indolores de intervenção sobre a pessoa, mas sempre mantendo o mesmo objetivo de viabilizar a pena através de revelações ou da colaboração daquele que irá sofrê-la.
 

A Convenção de Viena explicita a imposição da criminalização da posse para uso pessoal das substâncias e matérias primas tornadas ilícitas.[23] Ao tratar das penas,[24] admite, como já o fazia a Convenção de 1961, a aplicação ao consumidor de medidas de tratamento, educação, pós-tratamento, reabilitação ou reinserção social, substitutivas ou complementares à condenação.
 

                O aparente abrandamento, que estaria a se contrapor ao rigor punitivo destinado ao dito "tráfico", não esconde, porém, a violação ao princípio da lesividade. Tampouco esconde o conflito com as normas das declarações universais de direitos que asseguram o respeito à vida privada.[25]  Tais normas se vinculam ao enunciado genérico do princípio da legalidade[26] que submete o exercício do poder estatal a determinações legais e assegura a liberdade individual como regra geral, situando proibições e restrições no campo da exceção e condicionando-as à garantia do livre exercício de direitos de terceiros.
 

A simples posse para uso pessoal das drogas qualificadas de ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam um perigo concreto, direto e imediato para terceiros, são condutas que não afetam nenhum bem jurídico alheio, dizendo respeito unicamente ao indivíduo, à sua intimidade e às suas opções pessoais. Não estando autorizado a penetrar no âmbito da vida privada, não pode o Estado intervir sobre condutas de tal natureza, ainda mais através da imposição de uma sanção, qualquer que seja sua natureza ou sua dimensão. Enquanto não afetar concretamente direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e fazer o que bem quiser.
 

A desautorizada interferência na vida privada manifesta-se, portanto, não só em legislações nacionais que reproduzem a imposição explicitamente criminalizadora da Convenção de Viena, como a legislação brasileira vigente e proposta,[27] mas também em legislações que, aparentemente mais liberais, administrativizam a proibição, sem, no entanto, afastá-la. 
 

                Ao promover a artificial diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas, selecionando algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção e tornando-as objeto de proibição, as Convenções da ONU incluem dentre as substâncias e matérias primas proibidas plantas tradicionalmente cultivadas e utilizadas por comunidades indígenas, como é o caso, na América Latina, da folha de coca nos Andes.

        As permissões extremamente limitadas para seu uso lícito e o objetivo de erradicação das plantações, além de afetarem o ambiente e as condições materiais de vida dos integrantes daquelas comunidades, resultam na restrição ou mesmo no impedimento de atividades significativas no âmbito de suas tradições e seu patrimônio cultural. A proibição assim entre em conflito direto com a norma do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que assegura às minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas o direito a usufruir de sua própria cultura. [28]

 

III. Proibições, criminalizações e danos aos direitos fundamentais: a militarização da repressão no Brasil
 

Inspirando-se na “guerra contra as drogas”, a política brasileira no campo das drogas qualificadas de ilícitas tem como órgão responsável, desde 1998, a Secretaria Nacional Antidrogas, que, dirigida por militares, se subordina ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, órgão que, sucedendo, desde 1999, a Casa Militar da Presidência da República, não perdeu o caráter militarista explícito naquela. A própria denominação da Secretaria – “Antidrogas” – já sugere uma visão distorcida e delirante sobre as substâncias psicoativas, visualizadas militarmente como se fossem o “inimigo”.
 

O caráter militarizado da política brasileira se explicita em ilegítimas ações desenvolvidas pelo Exército, como as operações que vêm se repetindo na cidade do Rio de Janeiro, em claro desvio das funções que a Constituição Federal atribui às Forças Armadas. Resultando na ocupação de favelas como se fossem territórios inimigos, essas ilegítimas ações militares sequer disfarçam a identificação dos excluídos e marginalizados como perigosos, tradicionalmente feita de forma mais sutil através do normal funcionamento do sistema penal.
 

                Mas a repressão militarizada se expressa de forma ainda mais grave na regulamentação, em 2004, de dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica,[29] para concretizar a previsão de abate de aeronaves suspeitas de “tráfico” de drogas qualificadas de ilícitas. A regulamentação institui, de forma oblíqua, uma verdadeira pena de morte (a morte sendo conseqüência praticamente certa do abate), que, vedada pela Constituição brasileira,[30] além disso, estará sendo imposta antecipadamente, sem processo, por mera autorização do Comandante da Aeronáutica.

 

IV. Os danos e enganos do proibicionismo
 

As Convenções da ONU e as legislações dos Estados nacionais que expressam o proibicionismo voltado contra as drogas qualificadas de ilícitas, alimentando e sendo alimentadas por um enganoso discurso que apresenta especialmente os produtores e distribuidores das drogas qualificadas de ilícitas como um "inimigo" entrincheirado em uma indefinida e indefinível "criminalidade organizada", para cujo "combate" não bastaria a utilização de meios tradicionais ou regulares, pautam-se por uma excepcionalidade que se traduz, como visto, na sistemática violação de princípios e normas constantes das declarações universais de direitos e das Constituições dos Estados democráticos, na criação de vácuos em que afastada sua aplicação, verdadeiros espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias.
 

 Assim trazem à lembrança a eloqüente advertência de Nils Christie,[31] que mostra que o maior perigo da criminalidade nas sociedades contemporâneas não é o crime em si mesmo. O maior perigo da criminalidade, nos tempos atuais é sim o de que a repressão ao crime acabe por conduzir todas essas sociedades ao totalitarismo.
 

No mesmo sentido, pode-se afirmar que os maiores danos relacionados às drogas qualificadas de ilícitas provêm do proibicionismo. São danos aos direitos fundamentais, que estão a ameaçar a própria preservação do modelo do Estado de direito democrático, demonstrando que, em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição.
 

É, pois, a própria necessidade de preservação do modelo do Estado de direito democrático que está a exigir que se retirem da ordem jurídica internacional e interna de cada país as legislações proibicionistas em matéria de drogas, totalitariamente negadoras de direitos fundamentais.
 

O exercício de poder, consubstanciado na proibição criminalizadora de condutas relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo das drogas qualificadas de ilícitas, se viabiliza através da artificial distinção efetuada pela intervenção do sistema penal, que permite apresentar as substâncias e matérias primas proibidas (como a maconha, a cocaína, a heroína, a folha de coca) como se fossem diferentes de outras substâncias psicoativas não proibidas (como o álcool, o tabaco, a cafeína), permitindo, assim, que as substâncias e matérias primas proibidas e condutas a elas relacionadas sejam identificadas, como no preâmbulo da Convenção Única de 1961, como um "flagelo", ou, como no preâmbulo da Convenção de Viena de 1988, como um "perigo de incalculável gravidade”.
 

                O discurso emocional, assustador, demonizador, ocultando a funcionalidade política e a finalidade real do sistema penal, oculta ainda o perene fracasso de seus objetivos explícitos. Não há como deixar de classificar como fracassado um sistema que promete a proteção dos indivíduos, a evitação de condutas negativas e ameaçadoras, o fornecimento de segurança, paz e tranqüilidade e que, hoje, depois de séculos de funcionamento, busca a legitimação de um maior rigor e um maior alcance em sua aplicação exatamente no anúncio de um aumento incontrolado do número de crimes, de uma diversificação e de maiores perigos advindos desta criminalidade apresentada como crescentemente poderosa.
 

                O fracasso do proibicionismo, não só no campo das drogas qualificadas de ilícitas, mas em suas diversas manifestações, também poderia ser facilmente percebido, não fora a enganosa publicidade que igualmente o sustenta. Nesse campo das drogas qualificadas de ilícitas, é a própria ONU que aponta para o inegável fracasso na obtenção do inviável - e, na realidade, indesejável - objetivo explícito de construir "um mundo sem drogas", ao reconhecer, como o fez no relatório divulgado em 29 de junho de 2005 em Viena, que, depois de quase meio século de aplicação de suas Convenções, a circulação mundial das proibidas substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, não só não teria se reduzido, como, ao contrário, teria se expandido.[32]
 

                Ocultando o fracasso dos anunciados objetivos explícitos, a enganosa publicidade oculta ainda os paradoxos, como o fato da proteção da saúde pública, que estaria a formalmente fundamentar a criminalização das condutas relacionadas às drogas qualificadas de ilícitas, ser afetada por esta mesma criminalização.
 

                Impondo a clandestinidade à produção, à distribuição e ao consumo, o proibicionismo criminalizador impede o controle de qualidade das substâncias comercializadas, aumentando as possibilidades de adulteração, de impureza e de desconhecimento de sua potência, com os riscos maiores daí decorrentes. A intervenção do sistema penal, estendendo-se ao momento do consumo das drogas tornadas ilícitas, igualmente repercute sobre as condições em que tal consumo se realiza. Além de dificultar a informação e a assistência, a clandestinidade conseqüente à intervenção do sistema penal cria a necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, o que acaba por se tornar um caldo de cultura para o consumo descuidado e não higiênico, cujas conseqüências aparecem de forma mais dramática na difusão de doenças transmissíveis como a Aids e a hepatite.
 

                Desvinculando-se de reais preocupações com a saúde pública, que enganosamente anuncia pretender proteger, o proibicionismo criminalizador, demonizando as substâncias proibidas, ainda impõe obstáculos até mesmo a seu livre emprego com fins terapêuticos, como no uso da maconha para aliviar dores, náuseas e perda de apetite em pacientes com Aids ou sob tratamento quimioterápico. E isto acontece não obstante a produção, a distribuição e o consumo com este fim terapêutico estarem, da mesma forma que as ações de redução de danos, fora do campo de incidência de qualquer norma criminalizadora, na medida em que não afetam a saúde pública, mas, ao contrário, reduzem os riscos àquele bem jurídico. O paradoxo é tal que isto acontece não obstante tais ações estarem situadas ainda fora do campo de incidência da proibição traduzida nas Convenções da ONU, na medida em que se realizam exatamente com o fim médico a que aqueles diplomas internacionais pretendem condicionar a legalidade da produção, da distribuição e do consumo das substâncias e matérias primas proibidas.
 

                Ocultando a funcionalidade política e a real finalidade de proibições e criminalizações, ocultando o fracasso de seus anunciados objetivos explícitos, ocultando paradoxos, o proibicionismo criminalizador oculta não só os riscos e os danos aos direitos fundamentais e à subsistência do modelo do Estado de direito democrático, oculta não só os próprios riscos e danos à saúde pública, mas também o fato de que a intervenção do sistema penal no mercado produtor e distribuidor das substâncias e matérias primas proibidas traz a violência como um seu corolário.
 

Ao contrário do que propaga o proibicionismo, não são as drogas que geram violência. É sim o próprio fato da ilegalidade que produz e insere no mercado empresas criminalizadas, simultaneamente trazendo a violência como um subproduto de que devem se valer não apenas para o enfrentamento da repressão, mas também, dada a ausência de regulamentação e a conseqüente impossibilidade de acesso aos meios legais, como forma necessária de resolução dos naturais conflitos surgidos no decorrer de suas atividades econômicas.

 

V. O necessário rompimento com o proibicionismo
 

O proibicionismo somente se sustenta pelo entorpecimento da razão.
 

Somente uma razão entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consumidores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas, artificialmente selecionadas para serem objeto da proibição, sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita raízes na própria história da humanidade.
 

Somente uma razão entorpecida pode admitir que, em troca de uma ilusória contenção desta busca, o próprio Estado fomente a violência, que só se faz presente nas atividades de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas porque seu mercado é ilegal.
 

Somente uma razão entorpecida pode autorizar que, sob este mesmo ilusório pretexto, se imponham restrições à liberdade de quem, eventualmente, queira causar um dano à sua própria saúde.
 

Somente uma razão entorpecida pode conciliar com uma expansão do poder de punir, que, crescentemente desrespeitando clássicos princípios garantidores, ameaça os próprios fundamentos do Estado de direito democrático.
 

Já é hora, pois, de recobrar a razão e romper com o proibicionismo. Já é hora de propor e efetivar uma ampla reformulação das Convenções internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais, para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a promoção da saúde pública, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.

 


 


[1] A Lei 6.368/76 permanece em vigor, no que regula as matérias objeto do veto Presidente da República a todo o capítulo III e a outros dispositivos do projeto de lei 1.873/91 (que tomou o nº 105/96 no Senado Federal), que resultou na Lei 10.409/02.

[2] Artigo 36 da Convenção Única de 1961 e Artigo 3 da Convenção de Viena.

[3] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 9, 1), Constituição Federal brasileira (Artigo 5º, LIV).

[4] Vejam-se as regras dos incisos I e III do § 2º do artigo 12 da Lei 6.368/76.

[5]  Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo XI, 2), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 15, 1), Constituição Federal brasileira (Art.5º , XXXIX).

[6] Artigo 3, parágrafo 5 da Convenção de Viena.

[7] Lei 6.368/76 (Art.18).

[8] Artigo 32 do PL 7.134/02.

[9] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, 7).

[10] Artigo 3, parágrafo 7 da Convenção de Viena.

[11] Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo VII) e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 14. 1).

[12] Artigo 83, inciso V do Código Penal brasileiro.

[13] Artigo 2º § 1º da Lei 8.072/90.

[14] Constituição Federal brasileira (Artigo 5º caput e inciso XLVI).

[15] HC 82.959, julgamento concluído em 23/02/2006.

[16] Artigo 3, parágrafo 6 da Convenção de Viena.

[17] Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo XI. 1), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 14. 2), Constituição Federal brasileira (Artigo 5º, LVII).

[18] Tais dispositivos legais estão sendo questionados perante o Supremo Tribunal Federal, sendo boas as perspectivas de que, também nessa matéria, seja reformulada posição anterior do Tribunal para que, enfim, se tenha a declaração de sua manifesta inconstitucionalidade.

[19] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 14. 5).

[20] Artigo 5, parágrafo 3 e Artigo 11, parágrafo 1 da Convenção de Viena.

[21] Na legislação brasileira, a partir de sua previsão na Lei 9.034/95, a quebra do sigilo de dados pessoais foi se generalizando, estando prevista inclusive na específica Lei 10.409/02. Regras constantes da Lei 9.613/98 chegam a dar a órgãos do Poder Executivo o poder de conhecer toda transação financeira, superior a limite por estes mesmos fixados, realizada por qualquer indivíduo, independentemente da existência de qualquer investigação a respeito de eventuais condutas puníveis. A interceptação de comunicações telefônicas e em sistemas de informática e telemática foi introduzida no Brasil com a Lei 9.296/96, que, na elasticidade dos requisitos que estabelece, praticamente transforma em regra investigatória este meio excepcional de busca de prova. A específica Lei 10.409/02, remetendo à Lei 9.034/95, também prevê a interceptação e a gravação das comunicações telefônicas. A Lei 10.217/01, acrescentando regra à Lei 9.034/95, introduziu a previsão da escuta e da filmagem ambientais. Foi também a Lei 9.034/95 que introduziu a ação controlada de agentes policiais como meio de investigação No mesmo diploma, modificações vindas com a Lei 10.217/01fizeram ressurgir de forma ampliada a previsão da infiltração de agentes policiais, que, originalmente, fora objeto de veto do Presidente da República. A Lei 10.409/02 dá características específicas à infiltração e à ação controlada de agentes policiais. A previsão da delação premiada com a redução da pena do delator inaugura-se com a Lei 8.072/90, sendo repetida nos diplomas legais posteriores, que, com aquela “hedionda” lei, compõem a legislação brasileira de emergência ou de exceção. A específica Lei 10.409/02 ampliou o prêmio, prevendo hipótese de deixar o juiz de aplicar a pena, e, até mesmo, a hipótese de deixar o Ministério Público de propor a ação penal, incentivando acordos entre Ministério Público e indiciado ou réu, com vista à prática da delação.

[22] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, 3, g).

[23] Artigo 3, parágrafo 2 da Convenção de Viena.

[24] Artigo 3, parágrafo 4 da Convenção de Viena.

[25] Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo XII) e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 17).

[26] Declaração Universal dos Direitos Humanos  (Artigo XXIX, 2).

[27] Na legislação brasileira, a criminalização da posse para uso pessoal das drogas qualificadas de ilícitas aparece na Lei 6.368/76. As penas previstas são detenção de 6 meses a 2 anos e multa. Dada a pena máxima prevista, a indevidamente criminalizada posse para uso pessoal enquadra-se na definição de infração penal de menor potencial ofensivo dada pela Lei 10.259/01, sendo aplicáveis as regras contidas na Lei 9.099/95, que prevêem a imposição antecipada e “negociada” de penas não privativas da liberdade, ou a suspensão do processo, por um prazo de dois a quatro anos, e sua extinção, sem julgamento, desde que cumpridas condições em tudo semelhantes àquelas penas antecipadas não privativas da liberdade. No projeto de lei que tramita no Congresso nacional, a criminalização permanece, prevendo-se penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, outras penas não privativas de liberdade e, ainda, uma esdrúxula configuração de crime de desobediência. São previstas ainda hipóteses de submissão do agente a tratamento médico obrigatório, tanto na vigente lei brasileira, quanto no projeto que pretende substituí-la.

[28] Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Artigo 27).

[29] Veja-se o § 2º do artigo 303 da Lei 7.568/86, acrescentado pela Lei nº 9.614, de 5.3.1998 e a regulamentação efetuada pelo Decreto 5.144/04.

[30] Constituição Federal brasileira (Artigo 5º, XLVII, a).

[31] Esta advertência, feita por Nils Christie, encontra-se à página 24 de La industria del control del delito - ¿La nueva forma del Holocausto? (edição em castelhano, Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993, tradução de Sara Costa).

[32] No relatório de junho de 2005, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas para as Drogas e Crimes (UNODC), afirmava-se que o uso de drogas em todo o mundo crescera cerca de 8% no último ano, crescimento este liderado pela cannabis e que cerca de 200 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos – 5% da população mundial – teriam usado drogas ilícitas nos últimos 12 meses e seu mercado, movimentando em torno de 320 bilhões de dólares, superaria os produtos internos brutos de 90% dos países.

 

  


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