Propriedade Intelectual
Na dita
"sociedade da informação" o bem mais precioso, como o próprio nome
já diz, é a informação. Rumores fazem despencar bolsas, uma informação mal
contada levar países a bancarrota, segredos privilegiados podem transformar um
vendedor de cachoro quente em um novo magnata. Os conhecedores dos poderes quase
milagrosos da informação detém um monopólio cada vez maior desse bem
precioso . O conhecimento que poderia ser usado na intenção de engrandecer o
homem e promover uma melhor compreensão de si e das coisas à sua volta se
transforma, ou se mantém, em um bem material qualquer sob a regência das
flutuações do mercado. E as leis, que segundo dizem alguns, deveria proteger o
cidadão e elevar a todos e um nível de igualdade, misteriosamente se moldam a
partir dos interesses desses comerciantes de informação (ler artigo sobre
propriedade intelectual abaixo).
Os homens que
agora restringem o conhecimento protegidos por leis absurdas se esquecem que
eles próprios se aproveitam do conhecimento deixado por gerações passadas que
tiverem uma visão um pouco além de seu umbigo e em certo momento de suas vidas
provavelmente imaginaram que suas idéias poderiam beneficiar a gerações
futuras de um modo geral, e não uma pequena camada que pode pagar.
PORQUE SOMOS CONTRA A PROPRIEDADE INTELECTUAL?
by Pablo Ortellado
Enquanto a publicação
aberta é uma característica bastante conhecida do site do Centro de Mídia
Independente, a idéia irmã, de "copyleft", de subversão dos
direitos autorais, é ainda muito pouco conhecida e discutida. No rodapé da página
principal do site, ao invés da tradicional nota lembrando os direitos autorais,
lemos o seguinte:
"(C) Centro de Mídia
Independente. É autorizada a reprodução, na rede ou em outra parte, para uso
não comercial, desde que citada a fonte." Ao invés de restringir a
divulgação, a nota de "copyleft" (um trocadilho co
m
"copyright"), permite e mesmo estimula a distribuição posterior da
informação que o site veicula
.
Essa política de "copyleft" faz parte de um movimento amplo de oposição
aos direitos de propriedade intelectual. (Direitos de propriedade intelectual é
um termo genérico para designar os direitos autorais, de patentes e de marcas.
Neste artigo, falo um pouco dos direitos sobre patentes, mas, sobretudo, dos
direitos autorais. Para a questão das marcas veja Naomi Klein, Sem Logo).
COPYRIGHT
Embora nossa sociedade tenha assistido um longo debate sobre a propriedade
privada nos últimos dois séculos, pouco ainda foi dito sobre o caráter
peculiar desse estranho tipo de propriedade que é a propriedade intelectual. Em
geral, a propriedade é justificada como uma garantia de uso e disposição do
proprietário àquilo que lhe é de direito (por herança ou por trabalho).
Em outras palavras, alguém que adquiriu uma propriedade está garantindo para
si a utilização de um bem - e está tendo essa garantia porque fez por
merecer. Se alguém possui uma casa, por exemplo, a propriedade privada dessa
casa garante ao dono o acesso a ela quando bem entender e sua utilização para
os fins que escolher (além de poder dispô-la - vendê-la, emprestá-la, etc. -
se desejar). Se essa casa fosse compartilhada com outras pessoas, no momento em
que essas outras pessoas a estivessem utilizando, ele estaria privado daquela
casa que fez por merecer. Quando uma pessoa utiliza a casa, a outra não
consegue utilizá-la (pelo menos não na sua totalidade). Isso vale para todos
os tipos de bens materiais.
Mas o caso da propriedade intelectual é diferente e seus teóricos sabiam disso
desde o princípio. A legislação sobre a propriedade intelectual tem origem na
Inglaterra, numa lei de 1710, mas foi nos Estados Unidos que ela foi teorizada e
consolidada pelos "pais fundadores". Esses homens que fundaram a república
americana e escreveram a constituição sabiam que a propriedade intelectual era
diferente da propriedade material. Eles sabiam que canções, poemas, invenções
e idéias não têm a mesma natureza dos objetos materiais que eram garantidos
pelas leis de proteção à propriedade. Se quando eu uso uma bicicleta, a outra
pessoa é privada do seu uso (porque, a princípio, duas pessoas não podem usar
a mesma bicicleta ao mesmo tempo - principalmente se vão para lugares
diferentes), quando eu leio um poema, a coisa é diferente. Eu posso ler o poema
ao mesmo tempo que o "dono" do poema e meu ato de ler não apenas não
priva, como não atrapalha em nada a leitura dele.
Thomas Jefferson, um dos pais fundadores e um dos primeiros responsáveis pelo
escritório de patentes dos Estados Unidos discutiu isso numa carta famosa que,
à certa altura, diz: "Se a natureza produziu uma coisa menos suscetível
de propriedade exclusiva que todas as outras, essa coisa é a ação do poder de
pensar que chamamos de idéia, que um indivíduo pode possuir com exclusividade
apenas se mantém para si mesmo. Mas, no momento em que a divulga, ela é forçosamente
possuída por todo mundo e aquele que a recebe não consegue se desembaraçar
dela. Seu caráter peculiar também é que ninguém a possui de menos, porque
todos os outros a possuem integralmente. Aquele que recebe uma idéia de mim,
recebe instrução para si sem que haja diminuição da minha, da mesma forma
que quem acende um lampião no meu, recebe luz sem que a minha seja
apagada." (Carta de
Thomas Jefferson para Isaac McPherson de 13 de agosto de 1813 [The Writings of
Thomas Jefferson. Washington, Thomas Jefferson Memorial Association, 1905, vol.
13, pp. 333-335]. Essa passagem é muito citada como argumento contrário
à propriedade intelectual, mas a intenção de Jefferson é apenas mostrar que
a propriedade intelectual não é natural - o que não impede [e ele é um
defensor disso] que ela seja instituída pela sociedade)
Dessa forma, não parecia haver motivo para se transformar idéias (e canções,
livros e invenções) em propriedade. No entanto, o mesmo Thomas Jefferson
lembra da necessidade de se estimular a criação de invenções "para o
bem do público" e esse estímulo - para ele - só poderia ser a recompensa
(com bens materiais) ao "criador". As idéias, justamente porque têm
a característica de uma vez expressas serem assimiladas por todos que a
recebem, devem ser especialmente protegidas, para que os criadores de idéias não
fiquem desistimulados de criá-las e expressá-las. Aquele que cria a idéia
deve ter o direito sobre ela, de forma que toda a vez que alguém a utilize ou a
receba, ele tenha uma recompensa material. O autor de um livro deve receber os
direitos autorais pela publicação e o inventor, o direito pelo uso da patente.
Assim, diz a constituição americana: "O Congresso deve ter o poder de
promover o progresso das ciências e das artes úteis assegurando aos autores e
inventores, por um período limitado, o direito exclusivo aos seus escritos e
descobertas." (Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição
Americana, art. I, § 8, cl. 8)
Com o direito exclusivo às suas criações, os autores e inventores podem
explorar comercialmente as suas idéias e conseguir a justa recompensa pelo seu
esforço e talento. A recompensa é o estímulo para que o criador produza ainda
mais e a sociedade progrida em direção ao bem comum. Mas esse mesmo bem comum
pode ser ameaçado pela proteção excessiva à propriedade das idéias. Se se
cria muitos entraves, então, pode-se impedir, ao invés de promover a
"instrução mútua e a melhoria das condições". Partindo de sua
experiência no escritório de patentes, Jefferson observa que
"considerando o direito exclusivo de invenção como dado, não pelo
direito natural, mas para o benefício da sociedade", há inúmeras
"dificuldades em separar com clareza as coisas que valem a pena para o público
o embaraço de uma patente exclusiva, daquelas que não valem." Em outras
palavras, a questão é até que ponto a introdução do direito de propriedade
intelectual, ao invés de promover, termina por constranger o progresso do
saber, da cultura e da tecnologia.
Se os critérios para se estabelecer a propriedade são rígidos e a duração
do direito longa demais, então, pode-se dificultar o aproveitamento social da
criação. Esta é a questão fundamental discutida em toda a legislação sobre
a extensão do direito de propriedade intelectual. Na Inglaterra, a pioneira em
estabelecer uma legislação de propriedade intelectual, o debate começou no século
XVIII e percorreu os três séculos seguintes. Em 1841, foi feita mais uma
tentativa de ampliar a duração dos direitos autorais, que, nesse período,
cessavam depois de 20 anos da morte do autor. O famoso historiador Thomas
Babington Macaulay fez uma histórica intervenção no parlamento no qual
criticava um projeto de lei que propunha ampliar o direito autoral para 60 anos
após o falecimento do autor.
Seguindo a longa tradição anglo-saxã que legislava sobre o tema, Macaulay
balanceava o direito do autor em ser remunerado e o interesse social de usufruir
as criações o quanto antes e com o menor custo. Segundo ele, o sistema de
direitos autorais, tem vantagens e desvantagens e por isso não é preto, nem
branco, mas cinza. O direito exclusivo de propriedade intelectual, para ele, no
fundo é ruim, porque cria um "monopólio", o que encarece o
"produto" e o torna menos acessivel a todos. Mas, por outro lado, ele
é bom, porque permite que o criador seja remunerado pela criação.
De um lado, temos a necessidade do monopólio na exploração comercial de um
livro - de forma que apenas um editor possa lançar e vender o livro. Mas, por
outro, esse monopólio que sustenta o autor, prejudica a sociedade, encarecendo
o livro e tornando sua difusão mais difícil. Em suas palavras, "é bom
que os autores sejam remunerados e a forma menos excepcional de serem remuneados
é pelo monopólio. No entanto, o monopólio é ruim. Para que se consiga o que
é bom, devemos nos submeter ao que é ruim." Toda a questão para Macaulay
(e para toda a tradição anglo-saxã dominante) era saber a medida exata em que
a submissão do bom ao ruim era proveitosa: "o ruim não deve durar um único
dia a mais do que o necessário para assegurar o que é bom."
Mas quanto deve durar esse tempo? O projeto em trâmite no parlamento pretendia
ampliar o direito de 20 para 60 anos após a morte do autor. Segundo Macaulay,
esse período era muito grande e não trazia nenhuma vantagem em relação ao
período vigente de 20 anos (que ele dá a entender que já era excessivo). Se o
objetivo do direito autoral é estimular a criação, uma recompensa tão
distante e após a morte não parecia ser eficiente. Macauly argumenta:
"Sabemos bem quão pouco somos afetados pela perspectiva de vantagens
distantes, mesmo quando são vantagens que nós mesmos aproveitaremos. Mas uma
vantagem que será aproveitada mais de meio século depois que morrermos, por
pessoas que talvez não conhecemos, que talvez não tenham nascido, por pessoas
que finalmente não tenham conexão conosco não parece ser motivo algum para a
ação [criadora]." (Thomas
Babington Macaulay, "A Speech Delivered in the House of Commons on the 5th
of February 1841" In: The Miscellaneous Writtings and Speeches of Lord
Macaulay. Londres, Longmans, Green, Reader & Dyer, 1880, vol. IV.)
Com pequenas mudanças de ênfase, o debate sobre a propriedade intelectual
permaneceu sempre marcado pela disputa sobre o ponto de equilíbrio entre o estímulo
à criação e o interesse social de usufruir o resultado da criação. (Apesar
disso, houve várias tentativas de introduzir o direito natural no tratamento da
propriedade intelectual. Se a doutrina do direito natural vingasse, o direito de
exploração comercial exclusiva perderia o caráter de concessão temporária
justificada pelo estímulo à criação e se transformaria num direito
permanente e hereditário. Isso levaria num curto prazo à completa mercantilização
de todos os bens culturais. Felizmente isso não foi adotado em nenhum lugar. Na
França, depois da revolução, a constituição de 1791 consagrou o direito
"natural" à propriedade intelectual, mas a regulamentação desse
direito sempre restringiu o monopólio a um período de exploração
determinado) A primeira lei inglesa, de 1710, dava ao criador o direito
exclusivo sobre um livro por 14 anos e, se o autor ainda estivesse vivo quando o
direito expirasse, poderia renovar o direito por mais 14 anos. A legislação
americana baseou-se na inglesa e nos atos de patentes e de direitos autorais de
1790 retomou os períodos de 14 anos, renováveis por outros 14. Em 1831, o
congresso americano revisou as leis de direitos autorais substituindo o período
inicial de 14 anos, por um de 28, renovável por mais 14. Em 1909, as leis foram
novamente revisadas e o período foi mais uma vez ampliado para 28 anos iniciais
renováveis por mais 28 anos. Mais recentemente, porém, com o aumento do poder
da indústria cultural, a extensão do direito à propriedade intelectual
ultrapassou de longe os vinte anos após a morte que incomodavam o historiador
Thomas Macaulay em 1841.
As pressões começaram em 1955, quando o congresso americano autorizou o escritório
de patentes a desenvolver um estudo com vistas a revisar as leis de direito
autoral vigentes. O relatório final recomendava a ampliação do período de
renovação de 28 para 48 anos. As organizações de escritores e a indústria
cultural (principalmente as editoras), no entanto, insistiam num período que
cobrisse a vida do autor mais 50 anos após a sua morte. O pretexto para esse
período longuíssimo era a "modernização" das leis de direitos
autorais e a adequação delas à Convenção de Berne. (Evidência de que
adequação à Convenção de Berne era apenas um pretexto é dada pelo fato de
que apesar do período da vida do autor mais 50 anos ter sido adotado nos EUA em
1976, o país não aderiu à convenção até 1989 porque não abriu mão de
outros ítens "menores" como a exigência de registro. Para todo esse
levantamento, veja Tyler T. Ochoa "Patent and Copyright Term Extension and
the Constitution: a Historical Perspective").
Como a disputa não parecia poder ser resolvida no curto prazo e os direitos
estavam começando a expirar, os lobbistas conseguiram um adiamento extraordinário
do vencimento dos direitos que estavam por expirar, do ano de 1962 para o ano de
1965, enquanto a matéria não era definitivamente votada no congresso. Apesar
das reiteradas objeções do departamento de justiça, a polêmica em torno do
assunto levou a outros oito adiamentos "extraordinários", de 1965
para 1967, de 1967 para 1968, de 1968 para 1969, de 1969 para 1970, de 1970 para
1971, de 1971 para 1972, de 1972 para 1974 e de 1974 para 1976, tudo em nome dos
interesses dos detentores dos direitos (normalmente empresas e não os
descendentes dos autores) e em detrimento do domínio público.
Em 1976, finalmente, o Congresso aprovou uma nova e "moderna" lei de
direitos autorais, atribuindo um período de vigência do direito por toda a
vida do autor mais 50 anos e para trabalhos encomendados por empresas, um período
de 75 anos após a publicação ou 100 anos após a criação, o que fosse mais
curto. Em meados dos 90, no entanto, mais uma vez uma série de preciosas obras
em poder da indústria cultural aproximaram-se do prazo de expiração dos
direitos autorais. E, mais uma vez, a legislação internacional "mais
moderna" (a União Européia havia estendido o prazo de validade dos
direitos autorais para a duração da vida do autor mais 70 anos) serviu de
pretexto para a ampliação dos prazos de vigência dos direitos.
Desde o final dos anos 80, empresas como a Walt Disney e a Time Warner começaram
a preocupar-se com algumas de suas obras cujos direitos autorais cessariam nos
primeiros anos do novo século. A Disney preocupava-se com o personagem Mickey
Mouse que entraria em domínio público em 2003, com o Pluto que entraria em
2005 e com o Pateta e o Pato Donald que entrariam em 2007 e 2009, eespectivamente. Já a Warner preocupava-se com o personagem Pernalonga cujos
direitos expiravam em 2015 e com uma série de obras cujos direitos possuia,
entre elas, o filme "E o Vento Levou" que expirava em 2014 e uma série
de músicas de George Gershwin, entre elas a canção "Rhapsody in
Blue" e a ópera "Porgy and Bess", cujos direitos expiravam em
1998 e 2010, respectivamente. Temendo sofrer grandes prejuízos pela perda dos
direitos autorais, Disney, Warner e a indústria cinematográfica fizeram uma
pesada campanha de lobby encabeçada no Congresso pelo Senador Trent Lott. O
resultado foi a ampliação, em 1998, dos direitos autorais após a morte do
autor de 50 para 70 anos, caso o direito fosse propriedade de uma pessoa e a
ampliação de 75 para 95 anos caso o direito fosse propriedade de uma empresa.
Com isso, além das obras das duas empresas, ganharam mais 20 anos de exploração
comercial exclusiva romances como "O Grande Gatsby" de F. Scott
Fitzgerald e "Adeus às Armas" de Ernest Hemingway (cujos direitos
detidos pela Viacom venceriam em 2000 e 2004, respectivamente) e músicas como o
"Concerto número 2 para violino" de Prokofiev e "Smokes Get in
Your Eyes" de Kern e Harbach (cujos direitos, da Boosey & Hawks e da
Universal, venceriam em 1999 e 2008 respectivamente).
COPYLEFT
Voltemos agora aos fundamentos da legislação sobre propriedade intelectual
(nome genérico que abrange os direitos autorais, de patentes e de marcas). Como
vimos, desde que a legislação foi primeiramente elaborada, ela sempre foi
justificada pelo estímulo material que o criador receberia. Mas será que o estímulo
material é o único e o melhor estímulo que pode-se dar para o desenvolvimento
do saber, da cultura e da tecnologia? Será que antes do advento das leis de
propriedade intelectual as pessoas não eram estimuladas a escrever livros e canções
e a inventar dispositivos tecnológicos? Antes que Thomas Jefferson atuasse no
escritório de patentes, Benjamin Franklin que com ele e John Adams redigiria a
Declaração de Independência, tinha uma ativa vida de criador, tendo se
tornado conhecido em todo mundo por seus experimentos e invenções.
Realizador da famosa experiência com a pipa que provava que os raios eram
descargas elétricas e autor de invenções como o óculos bifocal e o pára-raios,
Benjamin Franklin sempre se recusou a patentear suas invenções. Em sua
autobiografia podemos ver os motivos pelos quais se recusava a explorar
comercialmente os inventos. Vale a pena citar um longo trecho: "Tendo
inventado, em 1742, um forno aberto para o melhor aquecimento de aposentos e ao
mesmo tempo, economia de combustível, na medida que o ar fresco incorporado era
aquecido na entrada, fiz um presente do modelo para o Sr. Robert Grace, um dos
meus amigos mais antigos, que, tendo uma fornalha de ferro, considerou a disposição
das placas desse fogão uma coisa muito útil, já que aumetava a sua procura.
Para promover essa demanda, eu escrevi e publiquei um panfleto de título: 'Um
relato do novo forno da Pensilvânia; no qual sua construção e modo de operação
são detalhadamente explicados; suas vantagens sobre qualquer outro método de
aquecimento de aposentos são demonstradas; e todas as objeções que foram
levantadas contra o seu uso são respondidas e esclarecidas, etc.' O panfleto
teve uma boa resposta. O governador Thomas ficou tão satisfeito com a construção
desse fogão, tal como está descrito, que me ofereceu uma patente para a venda
exclusiva deles por um período de anos. Eu recusei, no entanto, baseado num
princípio que sempre pesou para mim em tais situações: uma vez que tiramos
grandes vantagens das invenções alheias, devemos ficar felizes de ter uma
oportunidade de servir aos outros com quaisquer de nossas próprias invenções;
e isso devemos fazer de forma gratuita e generosa." (The Autobiography of
Benjamin Franklin. Nova Iorque, P. F. Collier & Son, 1909, p. 112).
O fato de que homens talentosos como Benjamin Franklin nunca se sentiram
estimulados pela perspectiva de retorno material por suas descobertas sempre foi
levado em conta no debate sobre os direitos de propriedade intelectual. O
historiador Thomas Macauly, por exemplo, que defendia os direitos segundo os
princípios clássicos era obrigado a fazer ressalvas quando mencionava a
contribuição que os ricos davam para a criação de obras e inventos: "Os
ricos e os nobres não são levados ao exercício intelectual pela necessidade.
Eles podem ser movidos para a prática intelectual pelo desejo de se
distinguirem ou pelo desejo de auxiliar a comunidade."
Mas será que a vaidade de produzir uma obra única ou a generosidade de
produzir um bem para a comunidade são virtudes exclusivas dos ricos? Boa parte
do desenvolvimento artístico parece dizer que não. Pintores importantes como
Rembrandt, Van Gogh e Gauguin morreram na pobreza e sem reconhecimento, assim
como músicos como Mozart e Schubert e um escritor como Kafka, embora nunca
tenha sido verdadeiramente pobre, não chegou a ser reconhecido em vida. Será
que a falta de perspectiva de recompensa material em algum momento impediu que
eles se dedicassem à música, à pintura ou à literatura? Será que não
tinham outro tipo de motivação - a expectativa do reconhecimento póstumo, o
simples amor pela sua arte?
A questão da propriedade intelectual, quando pensada fora da imagem tradicional
da balança que opõe estímulo material ao criador e interesse social em
usufruir a obra ou invenção, leva a muitas outras ordens de consideração.
Será que os artistas devem ser remunerados pela criação das obras? Poderiam
eles contribuir para esse bem coletivo e anônimo que é a cultura humana sem
ter usufruído e incorporado antes a rica e generosa contribuição dos outros
artistas, contemporâneos e do passado? E se achamos que é preciso um estímulo
material além da vaidade pessoal e da vontade de contribuir para o bem comum, não
seria possível então desenvolver um sistema público de recompensa para os
inventores, como sugere o economista Stephen Marglin? (Stephen Marglin
"Origem e funções do parcelamento de tarefas" In: A. Gorz. Crítica
da divisão do trabalho. São Paulo, Martins Fontes, 1989, pp. 37-77.) Um
sistema que premiasse as grandes idéias - por meio de concursos públicos, por
exemplo - mas que não limitasse o uso dessas idéias a um empreendor
individual?
Na verdade, questões como essas - se deve-se ou não recompensar materialmente
a criação e se a melhor forma de fazê-lo é através da exploração
comercial privada - são questões às quais não cabem respostas teóricas. São
os movimentos sociais que estão buscando alternativas concretas à propriedade
intelectual que deverão oferecer as respostas - e, de fato, já estão a fazer.
Desde que obras e patentes passaram a ser registradas, os direitos sobre elas
passaram a ser violados. Uma parte dessa violação dos direitos é, sem dúvida,
mero crime. No entanto, à parte a violação marginal e clandestina dos
direitos de propriedade intelectual (quepode ser muito grande, até mesmo
dominante), sempre houve um fênomeno diferente de desobediência civil das leis
que instauravam esses direitos.
A desobediência civil, como se sabe, é muito diferente do crime. O crime é
uma violação de lei clandestina, feita às escondidas e com o entendimento de
que a lei que se viola é legítima. A desobediência civil, por sua vez, é uma
violação pública das leis motivada por seu caráter ilegítimo. A desobediência
civil se faz abertamente e ela não reconhece que a lei que está sendo
infringida seja justa. Desde que os direitos de propriedade intelectual foram
instaurados, houve uma resistência aberta à sua aplicação no setor privado e
comunitário. A enorme dificuldade de fiscalização fez com que essa desobediência
civil tivesse um caráter passivo, que não se engajava na contestação das
leis de propriedade intelectual, mas simplesmente as ignorava. As pessoas sabiam
que os direitos existiam e deviam ser respeitados e simplesmente passavam por
cima deles porque achavam que eram absurdos. Evidentemente não estou me
referindo à pirataria comercial que era, sem exagero, apenas crime. A indústria
pirata reconhecia a legislação vigente e fugia dela de forma clandestina, sem
contestá- la. Aliás, todo industrial pirata não podia aspirar a coisa maior
do que transformar sua indústria pirata numa indústria legal e passar a
utilizar assim os direitos autorais a seu favor.
Mas coisa muito diferente eram os usuários que reproduziam a obra para fins não
comerciais - "para a sua instrução mútua e a melhoria das condições",
como dizia Jefferson. Quando aparelhos de reprodução se popularizaram (o mimeógrafo,
a fita cassete, a copiadora e em seguida a reprodução digital por computador),
as pessoas automaticamente começaram a reproduzir livros, canções, fotos e vídeos,
para si e seus amigos, sem pagar os devidos direitos, assim como, antes, já
encenavam peças nas escolas e nos bairros e cantavam e tocavam canções para
os amigos e para a comunidade também sem pagar os direitos. Por mais que a
campanha "cívica" promovida pela indústria e pelo governo lembrasse
a todos a importância de "pagar os direitos", as pessoas
desconfiavam, frequentemente de forma intuitiva, que aquele pagamento não fazia
sentido pois quem apenas usufria desse bem coletivo que é a cultura humana não
podia estar roubando nada de ninguém. Como Benjamin Frankliln havia escrito na
sua autobiografia, na produção da cultura (e do saber e da tecnologia), nada
pode ser feito sem que se tenha antes aprendido com a imensa comunidade dos
outros produtores contemporâneos e dos que nos precederam. E da mesma forma que
usufruimos e aprendemos gratuitamente com todos eles - de maneira tão ampla que
sequer podemos nomeá-los individualmente - devemos disponibilizar nossa
contribuição para a formação das novas gerações.
Embora nem a indústria, nem o governo tenham conseguido coibir de forma
eficiente o uso privado e comunitário das obras sem o pagamento dos direitos
autorais correspondentes (imagine a Warner exigindo das milhões de pessoas que
fazem aniversário todos os dias pagamento pelos direitos de "Parabéns
para você" [sim, há direito autoral para "Parabéns para você"
e ele pertence ao grupo AOL Time Warner que recebe como pagamento pelos direitos
aproximadamente dois milhões de dólares todo ano]) eles fizeram o possível e
o impossível para obstruir a difusão de tecnologias de reprodução doméstica
(muito antes das disputas recentes envolvendo o cassete de áudio e o vídeocassete,
pode-se lembrar o processo que a editora musical White-Smith moveu contra a
Apollo Co. em 1908 pela venda de "rolos de piano", cartuchos cilíndricos
com papel perfurado que eram utilizados por um dispositivo que permitia aos
pianos tocarem músicas automaticamente). Foi assim, em 1964, quando a Phillips
lançou o cassete de aúdio e a indústria fonográfica primeiro tentou impedir
o lançamento do produto e depois fez lobby no congresso para que fosse criado
um imposto sobre os cassetes virgens para compensar as "perdas" da indústria
resultantes das cópias que os usuários fariam de seus LPs para cassetes. O
mesmo aconteceu em 1976 quando a Sony lançou o videocassete formato Betamax. A
Universal Studios e a Walt Disney abriram um processo contra a Sony acusando- a
de incitar a violação dos direitos autorais e, depois de uma batalha judicial
que durou oito anos, a suprema corte finalmente reconheceu que a pessoa que
gravava o último capítulo da novela não praticava pirataria.
Depois, em 1987, chegou ao mercado um novo dispositivo de reprodução: a fita
de áudio digital, que permitia gravações digitais fiéis sem recurso à
compressão de dados (como acontece com o CD). Embora, de início, não tenha
tido boa aceitação no mercado e, posteriormente, tenha apenas conquistado o
mercado dos profissionais de áudio, a fita de áudio digital fez com que a indústria
fonográfica entrasse em desespero. Em função de suas pressões foram
propostas diversas leis e emendas no congresso americano que buscavam limitar a
capacidade de reprodução dos aparelhos e taxar as fitas virgens. Depois de
muitas disputas, o presidente Bush (pai), ratificou, em 1992, no último dia do
seu mandato, o "Ato sobre a gravação doméstica de áudio" que tinha
sido aprovado antes, no congresso, por voto oral (de forma que não setêm
registros sobre quem votou a favor e quem votou contra). O Ato, entre outras
medidas, obrigava todos os aparelhos de áudio digital a ter um dispositivo que
impedia a cópia em série de uma fita (ou seja, depois de feita uma cópia, não
se podia fazer outra cópia a partir dela) e instituía um imposto sobre os
aparelhos (2% sobre o preço de venda) e sobre as fitas virgens (3% do preço de
venda). O imposto, depois de recolhido, era distribuído da seguinte maneira:
57% para as empresas (gravadoras e editoras musicais) e apenas 43% para os
autores.
Seria este o tipo de incentivo ao autor que norteara o pensamento de Thomas
Jefferson e dos fundadores da república americana quando conceberam as leis e
instituições que regiam os direitos autorais? O interesse crescente das
grandes empresas na manutenção e ampliação dos direitos autorais se deve à
forma específica como eles foram estabelecidos. Quando a propriedade
intelectual foi concebida no final do século XVIII, sua finalidade era conceder
ao autor um monopólio sobre a exploração comercial da obra, de forma que quem
quisesse ler o livro que tinha escrito ou escutar a música que tinha composto,
teria que pagar a ele. Ele poderia exigir esse pagamento porque tinha o direito
exclusivo de comercializar a obra, sem concorrência. Mas é óbvio que os
autores não podiam fazer isso. A não ser que o autor de um livro se tornasse
também editor, ele não poderia diretamente explorar a obra. Ele teria que
recorrer a um editor, a um capitalista, que iria explorar a obra por ele e tirar
parte dos rendimentos para si próprio, como compensação pelo investimento.
Dessa forma, o autor cedia ao capitalista o direito de exploração exclusiva,
sem concorrência, que tinha recebido do estado e dividia com ele os dividendos
da criação. Mas, nessa relação, o elo fraco era o autor.
A distribuição de livros, discos e outros produtos sempre foi relativamente
cara e havia muitos autores para poucas empresas interessadas em lançá-los.
Isso fez com que as empresas tivessem um poder muito grande de determinar as
condições dos contratos e conseguissem assim uma grande participação nos
dividendos advindos da exploração comercial da obra. Era evidente que se o
objetivo era estimular o autor e não beneficiar as grandes empresas, não havia
porque o monopólio de exploração comercial ser cedido à empresa. A melhor
forma de beneficiar o autor teria sido ele manter para si o monopólio de
exploração e ceder para diferentes empresas concorrentes o direito não
exclusivo
de publicação da obra. Assim, com a concorrência entre as empresas, a obra
seria barateada e melhor difundida e os dividendos se concentrariam com os
autores que poderiam disputar licenças de exploração mais vantajosas.
Com o monopólio de exploração comercial oferecido pelos direitos autorais
sendo cedido integralmente para as empresas, não eram mais os autores que se
beneficiavam primariamente, mas as grandes empresas da indústria cultural. À
medida que o poder da indústria cutural crescia, também cresciam as campanhas
contra as violações dos direitos autorais. Essa pressão fez, de certa forma,
com que aquela desobediência civil passiva que aparecia quando as pessoas
simplesmente ignoravam as leis, se tornasse mais consciente e, assim, movimentos
de oposição declarada aos direitos autorais começassem a surgir. Enquanto
pequenos grupos de hackers radicais começaram campanhas de violação
deliberada dos direitos autorais, distribuindo música, vídeos, textos e
programas de graça na internet sob o lema "a informação quer ser
livre", grandes movimentos espontâneos menos conscientes e menos radicais
tomavam conta de um público mais amplo.
Entre esses movimentos, o de maior impacto, sem dúvida, foi a formação da
comunidade Napster. O Napster era um programa "ponto a ponto" (P2P)
desenvolvido em 1999 pelo estudante Shawn Fanning que buscava superar a
dificuldade de encontrar música em formato MP3 na internet. Até então, as músicas
em formato MP3 eram disponibilizadas principalmente por meio de servidores FTP
que, em geral, ficavam no ar apenas até uma grande gravadora encontrar o
servidor e enviar uma mensagem ameaçando deflagrar um processo judicial. Para
superar essa dificuldade, Fanning projetou um sistema ponto a ponto, em que usuários
poderiam acessar arquivos em pastas compartilhadas em computadores de outros usuários
através de links recolhidos por um servidor. Assim, suprimia-se a mediação
dos servidores que armazenavam os arquivos. Os arquivos de música ficavam no
computador de cada usuário e o servidor do Napster apenas disponibilizava os
links de acesso a eles. O Napster trazia uma concepção inteligente que
descentralizava o armazenamento dos arquivos. Com isso, criava uma situação
legal ambígua. Não se tratava mais de um grande servidor distribuindo música,
mas de uma rede de usuários trocando generosamente arquivos de música entre
si. De certa forma, nada distinguia a troca de arquivos na rede Napster do hábito
que as pessoas sempre tiveram de gravar fitas cassetes para os amigos.
A diferença era que isso era feito numa rede de cinco milhões de usuários - e
foi com base nessa grande dimensão que a RIAA, a associação das gravadoras
americanas, sustentou um processo contra o Napster. Um dos fatos mais relevantes
do fenômeno Napster foi a constituição da comunidade Napster. Na ausência de
um servidor que armazenasse os arquivos, o funcionamento da rede Napster exigia
uma comunidade de usuários que compartilhasse suas músicas de maneira
generosa. Se todos estivessem na rede apenas para baixar músicas e se
recusassem a disponibilizar os seus próprios arquivos, a rede fracassaria. Mas
o notável é que, a despeito de não ganharem nada e, pelo contrário,
consumirem uma fatia às vezes considerável da sua banda de acesso, milhões de
pessoas disponibilizaram músicas para outras pessoas que não conheciam,
formando uma verdadeira comunidade virtual.
O fenômeno Napster deflagrou grandes discussões públicas sobre os direitos
autorais entre 1999 e 2001, quando o Napster perdeu o processo na justiça. Por
um lado, essa discussão evidenciou o caráter de desobediência civil que
envolvia a utilização do programa. Embora o estatuto legal do Napster
estivesse em julgamento, na grande imprensa e na opinião pública formada por
ela, a mensagem uníssona era a das grandes gravadoras e dos grandes artistas
que condenavam o Napster e acusavam-no de roubo, pirataria e de tirar o sustento
de milhares de artistas esforçados. Apesar dessa massiva campanha de propaganda
dos órgãos de imprensa (muitos dos quais ligados a grupos empresariais que
também controlam grandes gravadoras), as pessoas não paravam de aderir à rede
Napster numa demonstração aberta de que não consideravam legítima uma lei
que impedia a livre troca dos bens culturais. A discussão sobre o Napster, por
outro lado, gerou um debate sobre a remuneração dos artistas e sobre as
dificuldades de se compatibilizar a livre troca de informações com o sustento
de uma classe de criadores profissionais remunerados. Não apenas as grandes
gravadoras se opuseram ao Napster, mas uma série de artistas estabelecidos, do
Metallica a Lou Reed (*), argumentaram que a livre troca de música sem o
pagamento dos direitos autorais retirava sua fonte de sustento. E embora esse
debate tenha sido muito desequilibrado - porque sempre estava ausente um
verdadeiro opositor dos direitos autorais - ele teve o mérito de pôr em evidência
o objetivo primário da instituição dos direitos de autor. (*Quem se debruçar
sobre a história da disputa sobre os direitos autorais vai sofrer desilusões
com grandes artistas que muitas vezes puseram mesquinhos interesses privados
acima dos interesses públicos. Não é apenas o caso do Metallica que
identificou os interesses dos novos artistas com o das grandes empresas,
lembrando que "apesar de todos nós gostarmos de criticar as gravadoras
grandes e más, elas sempre reinvestiram seus lucros na exposição de novas
bandas para o público" e que, "sem essa exposição, muitos fãs
nunca teriam a oportunidade de conhecer hoje as bandas de amanhã" [Lars
Ulrich, baterista do Metallica, em declaração sobre o Napster]. Numa audiência
no congresso americano, buscando revisar as leis de direito autoral em 1906, o
escritor Mark Twain, autor dos clássicos "As aventuras de Tom Sawyer"
e "Huckleberry Finn" simplesmente defendeu o direito natural à
propriedade intelectual. Após ser informado que tal doutrina era
inconstitucional, passou a defender a extensão do direito para o maior prazo
possível. Seus argumentos? "Eu gosto da extensão [do direito de
propriedade intelectual] para cinquenta anos porque isso beneficia minhas duas
filhas que não têm competência para ganhar a vida como eu ganho pois eu as
eduquei como jovens senhoras que não sabem e não conseguem fazer nada."
[E. F. Brylawsky e A. A. Goldman, Legislative History of the 1909 Copyright Act.
Littleton, Fred B. Rothman, 1976, p. 117 citado por T. T. Ochoa, no mencionado,
p. 36]).
Enquanto em alguns fóruns alternativos a possibilidade de um mundo sem direitos
autorais era discutida um tanto teoricamente, um movimento iniciado por
programadores começava a mostrar a viabilidade efetiva desse projeto. Não se
tratava de pensar como poderia ser uma sociedade sem direitos autorais, mas de
começar a pô-la em prática. Embora muitas histórias possam ser contatadas
sobre a origem desse movimento, podemos dizer que uma das suas principais
manifestações teve origem no início dos anos 80 quando o programador Richard
Stallman, do laboratório de inteligência artificial do MIT, abandonou seu
emprego por se sentir constrangido pelas restrições de direitos autorais que
impediam-no de aperfeiçoar programas comprados de empresas. Stallman sentia que
as licenças de direitos autorais que negavam acesso ao código fonte dos
programas (para impedir cópias ilegais) restringiam liberdades que os
programadores haviam usufruído antes do mundo da informática ser dominado
pelas grandes corporações - a liberdade de executar os programas sem restrições,
a liberdade de conhecer e modificar os programas e a liberdade de redistribuir
esses programas na forma original ou modificada entre os amigos e a comunidade.
Por esse motivo, Stallman resolveu iniciar um movimento que produzisse programas
livres, programas que resguardassem aquelas liberdades que o mundo dos
programadores conhecia antes das restrições empresariais. Foi com essas idéias
que Stallman começou a conceber o sistema operacional GNU que depois de ter o
kernel desenvolvido por Linus Torvalds ficou conhecido como Linux.
(Richard
Stallman "The GNU Operating System and the Free Software Movement"In:
Mark Stone, Sam Ockman e Chris DiBona (eds.)
Open Sources: Voices from the Open
Source Revolution. Sebastopol, O'Reilly, 1999). O significado do desenvolvimento
e principalmente da difusão do sistema operacional GNU/Linux não é apenas o
de romper o monopólio do sistema Windows, da Microsoft, mas, principalmente, de
fazê-lo por meio de um empreendimento em grande medida coletivo e voluntário.
Tirando alguns poucos funcionários que recebiam salários relativamente baixos
da fundação de Stallman (a Fundação para o Software Livre), a maioria dos
desenvolvedores do GNU/Linux eram programadores ligados a empresas e
universidades que davam sua contribuição voluntariamente sem esperar qualquer
outro tipo de retorno que não o reconhecimento público por um trabalho bem
feito. Como Benjamin Franklin, esses programadores, entre os quais
encontravam-se alguns dos melhores em sua área, doavam seu trabalho de forma
"gratuita e generosa" esperando contribuir para "o bem
comum" e "a melhoria das condições". E apenas com esse trabalho
voluntário e generoso (que nos últimos anos passou a ser bem explorado por
grandes empresas) conseguiu-se montar uma comunidade estimada hoje em mais de 15
milhões de usuários.
O sucesso da difusão desse sistema operacional e de centenas de outros
programas livres deveu-se ao fato de que esses programas garantiam a permanência
de suas características "livres". Quando Stallman iniciou o movimento
pelo sofware livre, ele concebeu um tipo de licença de direitos autorais que
assegurava a manutenção das liberdades em versões reproduzidas e melhoradas
dos programas. A esse tipo de licença, Stallman deu o nome de
"copyleft" (esquerdo autoral), num trocadilho com
"copyright" (direito autoral) (O termo "copyleft" partiu de
um amigo de Stallman que, brincando, escreveu certa vez numa carta:
"Copyleft: all rights reversed" [esquerdos autorais: todos os direitos
invertidos] em alusão à nota comum: "Copyright: all rights reserved"
[direitos autorais: todos os direitos reservados]. Veja o artigo de Stallman
citado acima.).
Ao invés de simplesmente abrir mão dos direitos autorais, o que permitiria que
empresas se apropriassem de um programa livre, modificando-o e redistribuindo-o
de forma não livre, Stallman pensou num mecanismo de constrangimento que
assegurasse a manutenção da liberdade que o programador havia dado ao
programa. O mecanismo pensado era reafirmar os direitos autorais abrindo mão da
exclusividade de distribuição e alteração desde que o uso subsequente não
restringisse aquelas liberdades. Em outras palavras, a pessoa que recebia um
programa livre, recebia esse programa com a condição de que se o copiasse ou o
aprimorasse, mantivesse as características livres que tinha recebido: o direito
de rodar livremente, de modificar livremente e de copiar livremente.
Com isso, os programas livres, frutos de esforços coletivos voluntários,
ganhavam uma licença que garantia que mesmo que as empresas quisessem usá-los
e distribuí-los, o fizessem de forma a manter suas liberdades iniciais. O
sucesso do sistema operacional GNU/Linux e do movimento do software livre trouxe
um exemplo concreto da possibilidade de se constituir um sistema de criação
onde a remuneração não fosse a forma principal de estímulo e onde o
interesse coletivo de usufrir com liberdade a cultura humana fosse mais
importante do que a exploração comercial das idéias. Claro que a objeção de
que os autores ficariam desprovidos de sustento e teriam que sujar as mãos com
trabalhos não puramente criativos permaneceu. Mas o exemplo de Richard Stallman
que trocou o papel de programador que cedo ou tarde seria forçado a submeter-se
às empresas, pelo papel de conferencista e acessor técnico independente ou
ainda, o exemplo de George Gershwin, que antes de garantir o sustento de sua família
por três gerações, ganhou a vida executando, como pianista e regente, suas próprias
composições, mostram que uma vida sem direitos autorais é possível.
Hoje o movimento pelo copyleft, pela livre circulação da cultura e do saber
ampliou-se muito além do universo dos programadores. O conceito de copyleft é
aplicado na produção literária, científica, artística e jornalística. Há
ainda muito trabalho de divulgação e esclarecimento a ser feito e é preciso
que discutamos politicamente os prós e os contras dos diferentes tipos de licença.
Precisamos discutir se queremos conciliar a exploração comercial com a utilização
não comercial livre ou se devemos simplesmente nos livrar dos mecanismos de
difusão comercial de uma vez por todas; precisamos também discutir questões
relativas à autoria e à integridade da obra, principalmente numa época em que
o sampleamento e a colagem constituem formas de manifestação artística
importantes; temos, finalmente, que discutir as inúmeras peculiaridades de cada
tipo de produção adequando a licença ao que estamos fazendo (a ênfase na
possibilidade de modificação de um programa de computador tem pouco cabimento
quando aplicado à produção científica, etc.). Esse trabalho não é o
trabalho de imaginar um mundo possível, mas de passar a construí-lo, aqui e
agora.
http://sabotagemrs.vilabol.uol.com.br/propriedade.htm
(c) 2002
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