Fernando Pessoa
 

- "Álvaro de Campos" -

  Segundo Fernando Pessoa: "Álvaro de Campos nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar Engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Fez uma viagem de férias ao Oriente de onde resultou o 'Opiário'. Agora está aqui em Lisboa em inatividade".
  Como geralmente acontece com os poetas de carne e osso, "Álvaro de Campos" apresenta três fases em sua poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista, depois pelo Futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e desiludidos.
  No poema "Opiário", "Campos" escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico, se apresentando amargurado e insatisfeito (ainda sob influência simbolista, há preocupação com a métrica e com a rima).
  Em seguida, "Campos" envereda pelo Futurismo, adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que resultam poemas como "Ode Triunfal", "Ode Marítima" e "Walt Whitman" (este último, homenageia o escritor norte-americano, além de se referir a seu homossexualismo, do qual "Campos" também parecia comungar). Uma influência de Whitman é

bem clara nos poemas de "Campos": a oralidade e prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa, nos quais é desprezada a rima ou a métrica regular.
  A última fase do heterônimo "Álvaro de Campos", em que pontifica o poema "Tabacaria", apresenta um poeta amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência.
  Assim como "Ricardo Reis", "Álvaro de Campos" confessa-se discípulo de "Alberto Caeiro". Mas, se "Reis" envereda pelo Neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, "Campos" se revela inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de "Caeiro".

Poema em Linha Reta

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeirtas, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso falar com meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

("Álvaro de Campos").