abertura os fatos textos wlj
os filmes
Volta ao menu de textos sobre a obra
um brasil de cinema
Carlos Alberto Mattos

Publicado no catálogo da mostra Inocência e Delírio (CCBB/Rio, Nov-2000)
     Quando escolhemos o binômio Inocência e Delírio como título desta mostra, sabíamos estar muito longe de dar conta da imensa riqueza da obra de Walter Lima Jr. Que seus personagens – e, como extensão, o seu cinema – transitam entre um certo estado de pureza e os transes do sonho, do desejo e da alucinação, disso seus filmes não deixam a menor dúvida. Mas tal deslocamento em relação à realidade objetiva, esse estar num mundo à parte, reflete a trajetória de um cineasta que sempre buscou o seu espaço próprio: a tela como território de independência.
      Diante da pergunta sobre onde se passam seus filmes, com freqüência Walter responde que eles acontecem na tela. Não é uma mera resposta retórica. O Brasil, é claro, está sempre lá. Excluindo-se filmes domésticos e algumas entrevistas para uma série de TV, Walter nunca rodou um fotograma sequer no exterior. Brasileiro na luz, nas paisagens, nas histórias e nos tipos humanos, esse é, no entanto, um cinema que não se subjuga ao típico nem aos cânones de uma suposta identidade cinematográfica nacional. São filmes que se querem cinema antes de qualquer outra coisa. Um cinema sem carteirinha, para sintetizar. 

Lirismo sob choque

      A explicação para isso pode começar no centro de Niterói, no final dos anos 40, quando o pequeno Walter Lima Jr. estreou como cinéfilo irrecuperável, driblando restrições familiares e porteiros de boa-fé para entregar-se à máquina de sonhos de Hollywood. Quando vieram o cineclubismo e a descoberta do cinema europeu, nosso herói já saía de uma adolescência povoada de fitas de piratas, filmes de John Ford, musicais multicoloridos, melodramas da Pelmex, vidas de Cristo e o diabo a quatro. De Sica, Pasolini, Godard, Visconti etc foram encontros posteriores, simultâneos àqueles com Murnau e Stroheim. Daí resultou, filtrada pelo bom-gosto, uma admiração balanceada pelos cinemas “novos” e “velhos”, com destaque especial para os “velhíssimos” clássicos do cinema mudo, esplendentes de síntese e comunicação visual.
      Walter foi jornalista do setor policial, copidesque e crítico de cinema antes de pisar pela primeira vez num set, o que ocorreu no inacabado Marafa, onde colaborou com o diretor Adolfo Celi. Ativo assistente de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ele começava sua carreira sob a égide  do Cinema Novo. Mas qual não foi a surpresa de quantos viram a estréia de Menino de Engenho, seu primeiro filme. As ousadias cinemanovistas eram largamente suplantadas por um recorte clássico, influenciado por Humberto Mauro, o western americano e os dramas familiares de Ford, com o quadro social condicionado aos personagens e uma visão nostálgica do velho mundo dos bangüês. “É um lírico”, tentaram colar o rótulo em sua testa. Walter fingiu que aceitou, mas partiu logo para desmenti-lo com Brasil Ano 2000.
      Cada filme de Walter introduz ou enfatiza algumas questões constantemente retomadas no conjunto da sua obra. Menino de Engenho introduziu, antes de tudo, a adaptação literária. O filme recolhia elementos não somente do livro que lhe dá título, mas de todo o ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego. Levar um texto à tela nunca foi para Walter Lima Jr. uma operação de fidelidade, seja factual ou de linguagem. Sua lealdade é pela emoção que perpassa o livro, o que implica uma leitura pessoal e a criação de um filme, no fim das contas, autoral. Assim foi com adaptações como Inocência, O Monge e a Filha do Carrasco e A Ostra e o Vento, todas fruto de um envolvimento radical do cineasta com a obra literária e consigo próprio. No caso de Inocência, ele modernizou e agregou complexidade psicanalítica a um roteiro inicial de Lima Barreto (o realizador de O Cangaceiro); em O Monge e a Filha do Carrasco, condicionou sua participação no projeto à liberdade para reescrever completamente a transposição.     
      Brasil Ano 2000 ofereceu-se como um espetáculo bizarro, misto de chanchada musical e alegoria futurista nascido no berço do Tropicalismo, cujos primeiros acordes se anunciavam quando o filme foi realizado, em princípios de 1968. Prossegue aqui o exame de uma dialética entre o arcaico e o moderno, incluídas suas repercussões na construção de uma identidade do povo brasileiro. O lirismo, representado pela personagem de Anecy Rocha, sofre um choque de desilusão e cede lugar a uma estrada vazia, símbolo (recorrente na época) de uma opção pela solidão desencantada, o desengajamento. O jornalista cínico, o radical que protesta no subterrâneo e a família de classe média cooptada pelo sistema são emblemas de uma controvérsia política instalada na obra de Walter Lima Jr. desde esse filme. Mais que uma indifereça, reinam em seus filmes uma certa descrença na prática política e uma sobreposição da esfera individual às grandes utopias coletivas. Movimentos e palavras de ordem empalidecem diante das particularidades do homem – para Walter, o agente insofismável da História.
      Essa postura é aprofundada na própria escolha da peça O Assalto, de José Vicente, para originar seu terceiro filme. Homens à margem do processo social, o bancário e o faxineiro de Na Boca da Noite se auto-exilam num jogo perverso de sedução e inversão de papéis, enquanto um deles prepara um apocalipse individual. Norma e transgressão aparecem nesse filme como forças nitidamente opostas, ao passo que na maior parte da filmografia do diretor surgem num intrincado movimento de fluxo e refluxo. Caberia um estudo à parte para identificar essa dramaturgia da ordem e da sublevação, principalmente em filmes como Brasil Ano 2000, A Lira do Delírio, Joana Angélica, Chico Rei e O Monge e a Filha do Carrasco.
      A mesma dicotomia se opera no estilo e na linguagem do cinema de Walter Lima Jr. Existe ali uma constante busca de liberdade dentro de um campo delimitado pelas conveniências da narratividade e da comunicação com o público. As experimentações contidas em A Lira do Delírio, Joana Angélica e A Ostra e o Vento, se por um lado rompem com a linearidade do tempo e do discurso, por outro se reorganizam numa linha alternativa de continuidade e clareza. É como se a transgressão instaurasse uma nova norma, informada por recursos da poesia como a metáfora, as rimas e as flutuações do sentido. O delírio, por assim dizer, remete a uma segunda inocência.

O tempo em movimento

      A Lira do Delírio chamou atenção para muitas coisas: o talento singular de Anecy Rocha, a beleza noir da Lapa, o charme da improvisação etc. Deixou uma semente sutil, mas eficaz, no que sobrou de cinema de invenção brasileiro nos anos 80. Mas nada impressionou mais que o tratamento do tempo no filme. Cenas rodadas em épocas distintas, com intenções diferentes, ajustavam-se como peças de um xadrez do inconsciente. O carnaval não era mero flashback, mas uma instância oscilante, que tanto podia ser memória, como premonição ou delírio. Na maioria dos filmes de Walter Lima Jr., o tempo está, ele próprio, em movimento. Menino de Engenho, por exemplo, inicia sua história dos anos 20 com um prólogo onde se antevêem as futuras ruínas de um engenho. Brasil Ano 2000 brinca com a idéia de futuro, Joana Angélica mescla a História com o presente, A Ostra e o Vento faz dos buracos do tempo a sua matéria dramática. Disposto em fatias ou camadas, separadas às vezes por um corte sincrônico, um discreto movimento de câmera ou uma mera mudança de luz, o tempo cria significações que estão sempre além das imagens.
      As idéias de máscara e fantasia carnavalesca também foram enfatizadas em A Lira do Delírio, assinalando uma recorrência importante na obra do diretor. Basta lembrar os civilizados pintados de índios em Brasil Ano 2000; a troca de roupas e papéis sociais entre os protagonistas de Na Boca da Noite; a madre e o interventor português “fantasiados” de seus personagens em cenas atuais de Joana Angélica; a escrava com o rosto empoado em Chico Rei; o homem-peixe de Ele, o Boto; a tentação travestida de Patricia Pillar em O Monge e a Filha do Carrasco. Os personagens de Walter – freqüentemente presos, ilhados ou desterrados – costumam suscitar reflexões sobre identidade e memória, simulação e disfarce.
      O culto ao espontâneo em A Lira do Delírio nasce da experiência de Walter Lima Jr. com a reportagem de televisão, inciada em 1971. A maior parte de sua atividade nos anos 70 foi na documentação de enchentes, desmatamento, poluição, violência, medicina popular, aculturação de índios etc para o programa Globo Repórter. Ali cineastas importantes como Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni, Domingos Oliveira, Luís Sérgio Person e Geraldo Sarno, ou futuros mestres como Eduardo Coutinho e Jorge Bodanzky encontraram formas de driblar a censura do regime e da televisão para falar transversamente da vida sob a ditadura. Walter abraçou o ofício com apetite e realizou dezenas de reportagens ou programas completos, colocando-se abertamente como interlocutor dentro do quadro.
      A entrada para a TV deu-se não apenas porque esta era a opção que lhe permitia, à época, trabalhar em ritmo continuado – de resto, uma obsessão de toda a sua vida profissional –, mas também pela fé de Walter numa possibilidade de resgatar o valor educacional e esclarecedor do veículo. É o que também o levaria mais tarde a dirigir vários programas para o projeto Educação pela Tevê, coordenado por Darcy Ribeiro quando secretário de cultura do Estado do Rio de Janeiro. Ainda em 1978, ele habilitou-se a um projeto de seriados para a televisão com a série Gesto Histórico, da qual conseguiu realizar apenas o piloto, Joana Angélica.
      Ao abordar pela primeira vez diretamente a História do Brasil, Walter o fez com um misto de respeito e atrevimento. A realidade e sua representação, o documentário e a ficção interagem de peito aberto, retomando, em outro plano, os procedimentos de A Lira do Delírio. A apresentação do engenho Santa Rosa ao menino Carlinhos havia sido, na prática, o primeiro documentário do autor, ainda que encenado. Na Boca da Noite abria frestas (não menos sufocantes) na ação para registrar um povo oprimido pelas grades, sirenes e o cotidiano do ano plúmbeo de 1970. Chico Rei só não comutou com mais freqüência entre a reconstituição histórica e a realidade atual por força dos inúmeros entraves que transformaram a produção num affair polêmico e, para Walter, numa saga pessoal. Ainda assim, a história do escravo que comprou sua liberdade deságua numa cena documental de congada, a festa que ele próprio teria inspirado.
      A trajetória do Walter Lima Jr. documentarista atingiria dois pontos culminantes com Em Cima da Terra, Embaixo do Céu e Uma Casa para Pelé, modelos distintos de approach da mesma questão: o desejo e a imaginação popular relacionados com o problema da moradia. No primeiro, predomina o ponto de vista do observador externo, que tira conclusões sociológicas a respeito do que filma. No segundo, mediante a participação direta no assunto tratado, o documentarista acaba tirando conclusões tanto sobre o seu objeto quanto sobre o seu próprio ofício. 

Animismo explícito

      Novos rumos se apresentam para a obra do cineasta a partir de Inocência. Walter torna-se parceiro póstumo de Lima Barreto no roteiro desse filme e do próximo, Ele, o Boto. Em ambos, lança um olhar contemporâneo à tradição – literária em um, popular no outro. Esse mergulho na brasilidade não desmentirá, porém, o universalismo cinematográfico abraçado pelo diretor. A procura de uma dramaturgia clássica, temperada por elementos mágicos e uma sensualidade irmã da poesia, vai levar à criação de espaços quase irreais, brasileiros na essência, mas perfeitamente adaptados ao país da tela. Da maneira como foram filmados, Inocência e Ele, o Boto resultaram irredutíveis a outra forma de expressão. A ligação com Pedro Farkas (a primeira a se repetir com um fotógrafo e que perdurou até A Ostra e o Vento) reforça o gosto do diretor pela imagem bem composta e o uso expressivo da luz como recurso cenográfico, narrativo e emocional. 
      Em seus dois filmes mais recentes, Walter aprofundou a impressão de fazer um cinema em terreno flutuante geograficamente e indefinido socialmente. Um cinema das emoções. O Monge e a Filha do Carrasco transforma a paisagem de Ouro Preto na de uma cidade européia do final do século 17. A Ostra e o Vento, por sua vez, bóia no tempo e no espaço como uma ilha-nave, cercada de mistério por todos os lados. Não é difícil ver por trás desses filmes um realizador que aprendeu a encontrar refúgio e certezas, mais que em qualquer outro lugar, na caverna luminosa do cinema.          
      Além de constituir um ápice na carreira de Walter Lima Jr. enquanto uso de seu material expressivo, A Ostra e o Vento consagrou o tema que talvez se apresente, retrospectivamente, como o mais importante em sua obra. A freqüência com que seus personagens transferem para a natureza o impulso dos seus desejos configura uma poética toda particular, desenvolvida com intensidade crescente desde Menino de Engenho, onde Carlinhos trava um de seus primeiros contatos sexuais com o tronco de uma árvore. Em Brasil Ano 2000 era a vez de Anecy Rocha experimentar o êxtase erótico abraçada a uma viga de pedra. Inocência elabora uma rede de metáforas com a febre, o desejo, a lua, borboletas e flores. O apelo da sensualidade em Ele, o Boto produz uma simbiose radical entre homens e peixes. Em O Monge e a Filha do Carrasco, Ambrosius usa um chá de ervas como passaporte para a tentação sexual. Mas é Marcela, a enamorada do ar em A Ostra e o Vento, que projeta esse animismo da forma mais explícita. A pulsão naturalista na obra de Walter tende a nivelar homens e elementos numa cosmovisão onde os fenômenos sociais têm peso não mais que relativo.
      Daí ser natural que a inocência e o delírio, dois estados excepcionais de percepção, freqüentem com tal regularidade a sua dramaturgia. Além desses, muitos outros subtemas e assinaturas autorais podem ser identificados numa visão de conjunto da filmografia de Walter Lima Jr. Um Brasil oblíquo – inocente e delirante ao mesmo tempo – surge das entrelinhas de seus filmes, mesmo quando eles parecem se passar apenas no espaço mágico do cinema. Compreender essa trajetória é, portanto, uma vereda estratégica para melhor se conhecer o cinema brasileiro dos últimos 35 anos.
Volta ao menu de textos sobre a obra
abertura os fatos textos wlj
os filmes